quarta-feira, 16 de março de 2011

2505) Medo de alma (16.3.2011)



Por que temos medo de alma do outro mundo? Pergunta que todo psicanalista deveria fazer aos clientes. Pouparia tempo e esforço aos dois. Uma réplica muito frequente seria: “E quem lhe disse que eu sequer acredito na existência delas?”. Diante do que, caberia ao doutor perguntar: “Por que não acredita?”. Encurralado por essa pergunta, eu, no divã, diria algo como: “Porque acredito que nós não temos alma. Somos apenas um corpo.” E ele: “Quer falar sobre o seu corpo?” E aí começaria a desenrolar o fio freudiano que conduz ao minotauro.

São várias as razões para ter medo. 1) Que a alma nos leve para o outro mundo. 2) Que ela nos demonstre (desmoralizando-nos) que o outro mundo existe, sim. 3) Que pelo fato de estar no mundo transcendental ela tenha tido acesso a uma versão resumida da Onisciência Divina e saiba uma porção de coisas que fizemos e pensamos. 4) Que ela prove, ao provar a existência da alma, que o corpo, “este excelente, completo e confortável corpo” (Drummond), não passa de ilusão; 5) Que o contato com algo que não existe prove simplesmente que você ficou doido. (Vide o argumento do cara que não viajava de avião: “Não tenho medo de que o avião caia. Tenho medo de morrer de medo.”).

Não: as “almas do outro mundo” pertencem a uma categoria, os corpos deste mundo a outra. As almas são projeções feitas por nós mesmos, e é o cacoete religioso que nos faz dar-lhes uma origem sobrenatural. Pergunte, a qualquer sujeito que já viu uma alma do outro mundo, como era a aparência dela. Ele dirá algo como: “Era meu avô, juro! Reconheci a barba branca dele, o rosto quadrado, o chapéu que usava... Estava com um casaco escuro, de bengala, parado perto da escada do porão”. Ou então: “Vi a alma da antiga dona da minha casa! Estava segurando uma vela acesa na mão, com um vestido do século 18, um xale branco...”

Quem melhor equacionou essa charada metafísica foi Rudyard Kipling no seu conto “O Riquixá Fantasma” (1888). Nele, o protagonista vive assediado amorosamente por uma mulher que não larga do seu pé, e vive no seu riquixá (uma espécie de carroça indiana) a assediá-lo. A mulher morre. Tempos depois, ele vai andando na rua e vê a morta, no mesmo riquixá, ainda a persegui-lo. E ele se pergunta: “Peraí... eu estou vendo a alma dela... mas o riquixá também tinha uma alma?!”.

É curioso que, quando vemos a “alma” de nossa bisavó ou de um escravo que morreu no engenho, essas almas estejam sempre vestidas, e nunca nuas. Se o que vemos fosse de fato a projeção visível de sua alma imortal, essa projeção deveria se deter nos limites do corpo biológico do falecido, porque a alma corresponde ao corpo. Não existem a alma do paletó, a alma do chapéu, a alma do colete, a alma do vestido, a alma dos sapatos... Não, minha gente. Se o fantasma aparecer vestido, é mera projeção alucinatória do nosso inconsciente. Agora, se a alma de Marilyn Monroe aparecer nua em pelo na minha frente... eu ajoelho e rezo.