segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

4672) Eu me lembro – 21 (futebol) (8.2.2021)



(Na arquibancada coberta do PV, no tarol, com José Umbelino Brasil, Arly Arnaud e outros sofredores)

1
Eu me lembro que no Estádio Presidente Vargas, o famoso “campo do Treze”, havia uma enorme placa de Cinzano por trás do gol que dá para o Quartel dos Bombeiros, à direita de quem está sentado na arquibancada coberta, onde ficam as cadeiras cativas. (O outro gol, que tem uma arquibancada por trás, dá para os portões de entrada do campo, na rua Teixeira de Freitas.) Era uma placa enorme que se elevava a uns dez metros de altura. De vez em quando, algum atacante “isolava” a bola ao tentar o gol e a bola ia direto na placa, provocando um grito unânime de euforia na torcida, mesmo quando era um jogador trezeano o autor de façanha-de-incompetência. Me lembro que o lateral-direito Braga, um negão alto e forte de chute potentíssimo, que veio do Campinense para o Galo por volta de 1964, uma vez cobrou uma falta direto na placa, que quase veio abaixo.
 
2
O jogo de pelada, quando éramos garotos, era uma das mais curiosas experiências formadoras do conceito de democracia. Pelada não tem juiz. O jogo é apitado por consenso e discussão. Tudo é motivo para divergências aos gritos. A bola saiu, não saiu, a bola entrou, não entrou, esse esbarrão foi falta, não foi, foi bola na mão, foi mão na bola... Cada decisão da “arbitragem” é tomada dessa forma, e o mais interessante é que, como tudo é discutido, a maior parte das coisas acaba sendo aceita sem discussão, a não ser quando existe uma dúvida real e ambas as partes se julgam prejudicadas. Um conceito importante para dirimir dúvidas era a de que quem desistisse primeiro da polêmica dava o impasse por perdido; considerava-se que quem fosse embora primeiro tinha “corrido de campo” e era dado como perdedor. Muitas vezes brigava-se por um gol (“foi gol – não foi”), e o jogo não prosseguia porque nenhum dos times desistia. O jogo parava, todo mundo sentava no chão, o sol se punha, a discussão cessava, depois de minutos de silêncio alguém dizia: “-- E então, aceita?” e vinha a resposta: “-- De jeito nenhum!”. Mais de uma vez, já em plena escuridão, as mães da gente, impacientes com a demora dos que deviam tomar banho e jantar, desciam furiosas até a “graminha” e tangiam os litigantes para casa embaixo de impropérios, e mesmo assim a discussão continuava: “-- Quem saiu de campo primeiro foram vocês!... – Não, foram vocês!...”  Tem jogo que está pendurado até hoje.
 
3
Já gastei muito dinheiro com material de torcedor, comprando “peles” (de plástico) para os taróis e as caixas da charanga “Esporões do Galo”, nos idos de 1974-75-76. Os instrumentos eram alugados, ou melhor, surrupiados da banda marcial de algum colégio de bairro onde a mãe de algum dos integrantes ensinava ou trabalhava. No dia do jogo alguém ia lá de carro, abria-se a sala dos instrumentos, enchia-se o carro, a bateria era levada direta para o Estádio, ou para o bar do esquente. Depois do jogo, revertia-se o trajeto e os instrumentos eram devolvidos. Nosso único compromisso era substituir as peles que nosso furor alvinegro acabava rasgando, de tantos rufos. Gastei muito com bandeira também, e a bandeira que mais gostei foi desenhada por mim mesmo. Era totalmente branca, com a palavra GALO em grandes letras pretas, e foi costurada por Lídia, minha sogra. O G e o O foram riscados a lápis de grafite usando como modelo justamente a pele de um tarol, que forneceu o círculo interno da letra, cujo traço tinha uns cinco dedos de espessura; as outras letras foram traçadas a lápis e régua, na mesma proporção.
 
4
Morei alguns anos na Rua Padre Ibiapina, numa casa que era da família de minha mãe. Moramos ali mais de uma vez; meu irmão Pedro nasceu nessa casa, em 1954, e em 1967 estávamos lá de novo, na época em que entrei para o Cineclube de Campina Grande. Nossa casa ficava em frente ao engarrafamento da cachaça Paturí, e um pouco mais acima, cruzando a Rua João Suassuna, ficavam os armazéns de açúcar de Artur Freire. Em toda aquela vizinhança, dia e noite, perpassava um cheiro doce-azedo de cana de açúcar, um cheiro às vezes acre demais, às vezes enjoativo, mas que até hoje, quando sinto de passagem, me traz boas lembranças. O gerente da Paturí se chamava Dionísio, era torcedor do Campinense. E todo dia aparecia lá, para lavar o carro dele, o famoso Zé Pezinho, um lavador de carros humilde e torcedor do Treze. Bate-bocas intermináveis entre os dois! Eu me postava no terraço para assistir. Ganhasse quem ganhasse, é claro que a discussão rendia, e rendia muito, até porque Zé Pezinho era estourado e boquirroto, e Dionísio ficava se rindo, encostado na porta, provocando. Tempos depois Zé Pezinho faleceu, e minha mãe me disse: “Morreu sem um tostão, coitado, mas Dionísio tomou a frente e custeou o enterro dele, todo”.  Formas de amizade que o futebol conseguia criar.
 
5
Uma das camisas do Treze que eu mais gostava foi uma que herdei de Jakson Agra, “Son”, meu amigo que morreu em 1978 num acidente de carro. Ele nem gostava de futebol, mas por influência minha começou a se abalançar como torcedor do Treze. Convocou o irmão mais novo (eram três – Son, Marcos e Aroldo) para pintar o escudo do Treze numa camisa meramente alvinegra que ele achou na Casa Esporte, com listras verticais. Aroldo era torcedor do Campinense, mas uma coisa é irmão mais velho e outra coisa é irmão mais novo, e ele se aplicou na pintura do escudo à altura do peito, com o requinte de fazer um desenho contínuo, usando tinta preta onde a listra era branca, e tinta branca onde a listra era preta. Finda a pintura, seca a tinta, um raio de terror caiu sobre a casa: na concentração detalhista de pintar, o indigitado tinha pintado o escudo nas costas da camisa, e não na frente!  Única saída possível: deixar aquela pintura como estava, e pintar um novo escudo, seguindo os mesmos princípios, na parte da frente da camisa. Ficou tão massa que acabei ganhando Son no papo e trocando a camisa por alguma besteira, um LP de Chico Buarque ou um livro de Fernando Pessoa; e foi essa camisa trezeana que acompanhou meus périplos até quase os 40 anos de idade, quando eu a vestia antes de ir para o bar comemorar (com cariocas desavisados) os títulos alvinegros que o rádio me informava a distância.
 
6
Lembro de um jogo terrível, traumatizante, uma derrota do Treze para o Campinense quando eu tinha doze ou treze anos. Foi numa decisão de Torneio, no Estádio Presidente Vargas. Zero e zero no primeiro tempo. No segundo tempo, o Campinense fez 1x0 com um gol de Tonho Zeca, um chute a meia-altura da entrada da área, no gol que dava para os bombeiros (o da placa de Cinzano). Bola vai, bola vem, bola vem, bola vai, como dizia Zé Américo Segundo: o Treze empatou ainda na metade do segundo tempo, uma confusão na área (no gol da arquibancada, dos portões de entrada), bola bateu em todo mundo e acabou entrando, parece que a imprensa deu como gol de Géo. Jogo empatado. Aí... faltando pouco para terminar, falta contra o Galo, perto da área. Barreira formada. Araponga bate do jeito que sabia bater: uma folha-seca tipo Didi. Que entra no ângulo. Foi aquele famoso gol (“celebrado em prosa e verso”) em que a bola bateu na juntura dos planos da rede, e ficou três ou quatro segundos presa ali, antes de cair ao chão, dentro do gol. Carnaval rubro-negro, eu saí com o rabo entre as pernas, fumaçando de ódio. Quando cheguei na Praça do Trabalho, quem eu avisto? A caminhonete (repleta) de Frederico Mendes, nosso vizinho de rua, raposeiro de quatro costados, e quando a meninada me viu de longe ergueu-se num grito unânime de gozação. Mas mesmo a humilhação da derrota não me faria abrir mão daquela carona para a porta de casa; e lá fui eu. Quando subi para a carroceria, olhei para meus amigos (todos amigos da pelada, do jogo de botão, da série de TV, todos vergonhosamente rubro-negros) e estavam seríssimos, como se tivesse morrido alguém. Gozação zero. De noite, me contaram: que quando Fred parou o carro pra esperar por mim, abriu a porta e berrou pra trás: “Se mangarem dele eu dou uma surra em cada um!”  Grande Fred.