quarta-feira, 25 de abril de 2018

4340) Dez álbuns: 3 - "For Little Ones" (25.4.2018)




(Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.)

Este é sem dúvida um dos álbuns que mais escutei durante minha vida inteira, e ele tem além disso uma peculiaridade interessante: é um dos raríssimos álbuns cujas letras eu já sabia quase de cor antes de ouvir pela primeira vez.

Em 1970 eu estudava em Belo Horizonte e mantinha uma correspondência cerrada com os irmãos Jakson (“Son”) e Marcos Agra, meus colegas do Cineclube de Campina Grande. Son era um desses caras que quando se tornam fãs de algo tornam-se verdadeiros missionários, tentando batizar e converter todo mundo.

Ele descobriu esse LP do bardo escocês Donovan, For Little Ones, e sua vida dividiu-se em antes e depois. (Nada de mais: com ele, isso acontecia todo mês.) Copiou à mão todas as letras e mandou para mim, ameaçando-me de ferro em brasa e chumbo derretido se na minhas férias em Campina eu não ouvisse o disco e concordasse com ele.

Concordei. O que fazer? O disco de Donovan é, ao que se diz, um disco de canções infantis (“Para os Pequeninos”). Ao que parece, foi lançado em álbum duplo com outro título, A Gift From a Flower to a Garden, que conheço pouco. Mas são canções infantis para crianças britânicas, que são um universo totalmente diferente do mundo infantil brasileiro. São canções de melodias nostálgicas, belas, recursivas. Versos de grande beleza poética escandidos por uma voz de dicção perfeita (dava para entender quase tudo que era cantado!). Um violão dedilhado que passei anos tentando imitar, e floreios magníficos de uma flauta.

As letras falam de uma viúva na praia esperando a volta de um marinheiro, de um músico ambulante que anda com um macaquinho dançarino, de uma cigana que passa por uma vila e a deixa enfeitiçada, de um maturalista que volta da praia com os bolsos cheios de conchas. São pequenas vinhetas, com imagens visuais fortes, que têm de fato um clima infantil, no sentido de que sugerem um mundo meio de fantasia, de encantamento, a partir de paisagens e personagens reais.

Aqui, links para algumas dessas canções:

“Widow With Shawl (A Portrait)”:

“The Enchanted Gypsy”:

“Epistle to Derroll”:

“The Lullaby of Spring”:

The “Starfish-on-the-Toast”:

Donovan tem discos até melhores do que este, como Mellow Yellow, um disco pop, londrino, moderno; ou Celtic Rock, com banda mais pesada. Ele é um excelente cantor, mas teve o azar de ser contemporâneo de Bob Dylan e ser sugerido pela imprensa como “o Dylan britânico”. Os dylanmaníacos, para quem Dylan não é um cantor e sim uma entidade acima do Bem e do Mal, veem Donovan como “aquele inglês chato” que apareceu no hotel de Dylan durante a turnê londrina.

For Little Ones faz uma ponte muito interessante entre o rock britânico e a literatura infantil britânica, uma das melhores do mundo, ou pelo menos uma das mais influentes. Ser criança na Inglaterra, um país invernal e reprimido, não devia ser fácil naquela época. As escolas inglesas eram um pesadelo a que muita gente não conseguia sobreviver psiquicamente. Basta ler os relatos autobiográficos de dezenas de autores (Roald Dahl, George Orwell em Books vs. Cigarettes, e tantos outros). Uma instituição onde o bullying (de chicote em punho) era oficializado.

Em Revolution In The Head (1994), Ian MacDonald observa que um dos discos mais importantes dos Beatles, o compacto contendo “Penny Lane” / “Strawberry Fields Forever” (1966), mostra McCartney e Lennon recorrendo (cada um ao seu modo) às lembranças de infância (que brotariam novamente em várias faixas de Sgt. Pepper’s (1967). Diz ele (p. 172-173):

Este segundo aspecto da canção [SFF] inaugura para todos os efeitos o espírito “pop-pastoral” inglês, explorado no final dos anos 1960 por grupos como Pink Floyd, Traffic, Family e Fairport Convention.

“Pastoral”, no caso, não tem conotação religiosa, e sim de evocação a uma vida rural idílica, junto à natureza; um paraíso no campo, longe das multidões enlouquecedoras, longe da frieza e do cinismo da vida urbana. Seria algo parecido com o nosso Arcadismo poético. Ou, mais modernamente, com o espírito “eu quero uma casa no campo”.

Mais significativo, no entanto, era o ponto de vista infantil adotado pela canção – porque o verdadeiro tema da psicodelia inglesa não era nem o amor nem as drogas, mas uma nostalgia pela visão inocente das crianças.

Rapazes que aos dez anos frequentavam a escola de terno e gravata descobriam-se de repente com o direito de tirar a roupa e dançar na grama de um parque, ao sol do verão. A tradicional família britânica via nisso uma ameaça permanente de suruba, porque ao que parece as famílias tradicionais não pensam noutra coisa. Ouso dizer, pelos muitos relatos de época que já li, que as surubas ou mesmo as trepadinhas dois-a-dois eram relativamente poucas. Nudez para essa turma era uma espécie de libertação angelical.

O próprio MacDonald lembra outras bandas que conseguiram reproduzir musicalmente esse universo meio Alice in Wonderland da psicodelia inglesa, entre elas a Incredible String Band, cuja coletânea dupla Relics eu talvez acabe incluindo e comentando nesta lista.

Donovan era um bardo tão inimitável quanto Bob Dylan, e a única coisa que os dois tinham em comum era a riqueza poética e a conexão prfunda com a música folk onde bebiam. Dylan era sem dúvida um poeta com territórios poéticos mais variados; mas Donovan, na sua faixa mais estreita, era igualmente imbatível.