quinta-feira, 9 de setembro de 2021

4742) O Mundo como Programa e Simulação (9.9.2021)



O filósofo Schopenhauer tem um livro famoso, O Mundo como Vontade e Representação (1818). Nunca li esse livro, quem me dera; mas sei que é uma das obras mais citadas dos filósofos daquele século. Tem uma grande influência na literatura de Jorge Luís Borges, por exemplo.
 
Num parágrafo lindo (Os Prêmios, no capítulo “E” dos monólogos de Pérsio), Julio Cortázar admira o fato de a tinta de um tinteiro, se adequadamente espalhada ao longo de folhas de papel, com o auxilio de uma pena de ponta bem fininha, se transformar em O Mundo como Vontade e Representação.
 
Quando li esse trecho, me lembrei do outro exemplo cortazariano. Em O Jogo da Amarelinha (cap. 64), o personagem Oliveira admira a mestria de um pintor de calçada, aqueles caras que numa rua de Paris usam giz colorido para criar belos quadros no pavimento. E Oliveira comenta que os transeuntes que botam moedas na caixinha do artista não estão pagando pelo resultado visual, mas pelo fato de que o rapaz está trabalhando:
 
Na verdade, essas pinturas não se apagam nunca. Mudam de rua ou de cor, mas já estão prontas em uma mão, uma caixa de pedaços de giz, um astuto sistema de movimentos. A rigor, se um desses rapazes passasse a manhã agitando os braços no ar, receberia dez francos com o mesmo direito que lhe cabe quando desenha Napoleão. (trad. BT)
 
Cortázar constata, nesses dois exemplos, a distância e o vínculo entre o que podemos chamar de “programa” (conjunto de instruções para produzir um resultado concreto) e “simulação” (o resultado do programa, visível, compartilhável, acessível a observadores externos).

 
No caso do texto escrito à mão, não basta existir a tinta escura, molemente repousando no tinteiro, naquele pequeno açude hermético de entropia indiferenciada. É preciso distribuir essa tinta no papel, de maneira a extrair o Múltiplo e Diferente que está em situação de “possível” dentro daquele bloco líquido do Uno e Igual. Formar palavras inteligíveis; em essência, um processo não muito diferente do de distribuir tintas variadas sobre uma superfície de tela, de papelão ou de pedras de calçada.
 
Quando comecei a usar computadores (o primeiro que usei foi em 1991; o primeiro que comprei foi no ano seguinte) entrei em contato com o conceito de “salvar” um texto. Para mim, isto correspondia a tirar uma folha de papel da máquina-de-escrever e guardá-la em segurança na gaveta, pronta, inviolável, fiel a si mesma até mesmo nas linhas canceladas com “xxxxxxxxx”. Era assim que eu visualizava o processo: dentro do disco-rígido de 64 Mb (o que eu usava na época, num PC 386) havia minha paginazinha de Word, igualmente pronta e inviolável.
 
Aos poucos, fui aprendendo que não é bem assim. Eu vejo no monitor uma página branca coberta de letras pretas, onde vou digitando, e novas palavras aparecem, organizadazinhas como as da máquina de escrever, na fonte Calibri 11, que estou usando no momento. Para mim, esta página aqui tem uma existência tão física quando a lauda de papel Chamex escrita pelos martelinhos da minha saudosa Olivetti.
 
É assim – e ao mesmo tempo não é bem assim.
 
Vamos pensar na fotografia, só para pegar outro exemplo.


Uma fotografia tirada em câmera digital, e salva num computador, não tem existência física. Não é um retângulo de celulóide coberto com uma emulsão química que foi alterada, fervida, queimada, transformada num breve segundo de exposição à luz; e que depois foi projetada numa folha de papel coberta com outro tipo de emulsão, e depois esse papel passou por um banho de líquido “revelador”, e depois outro banho de líquido “fixador”, até resultar na foto que podemos segurar na mão e mostrar às pessoas em nossa sala de visitas.
 
A foto digital não é a mesma coisa que “uma foto de papel guardada numa gaveta”. O arquivo que mostra a imagem no meu monitor é apenas um conjunto enorme de instruções microscópicas ensinando a recompor visualmente a foto no instante em que eu abro o arquivo.
 
Não existe foto. Existe no meu computador um programa, que acabei de ativar, dizendo: “Prepare um espaço retangular de X por Y pixels... Em tais e tais pontos, coloque um pixel azul... Nesses outros, pixel amarelo... branco... preto... cinza... vermelho...” E a foto se recompõe, como se estivesse sendo criada pela primeira vez. Cada vez que abrimos o arquivo, e ativamos esse programa, o programa produz a simulação. Quando desligamos, a simulação vai embora para sempre, e o programa se recolhe a sua prontidão muda.
 
Quando Cortázar diz que o retrato de Napoleão já está de certa forma prontinho-da-silva nos braços do desenhista e na caixa de giz, é ao programa que ele se refere.
 
Quando botei o pé pela primeira vez na rápida correnteza da Internet (em 1994) comecei a ter os primeiros vislumbres dessa idéia de que o Mundo em que vivemos é uma representação visível de processos, programações, cálculos e produção de efeitos especiais. Ou seja: o mundo é um videogame.
 
Schopenhauer se referia à “Vontade” que impulsiona toda a matéria do Universo a produzir a “representação” material desse impulso. Essa representação consiste em variadas formas que dependem da matéria usada, da função a que se destinam, do entrechoque de forças que pode consistir num enfrentamento ou numa harmonia.



Creio que uma pálida comparação, mas não de todo inadequada, pode ser feita com uma sinfonia orquestral, algo típico da época de Schopenhauer. A “Vontade” é o impulso da criação musical de se manifesta de diferentes maneiras, através não apenas dos diferentes instrumentos (sopros, cordas, teclados, vozes, etc.) como também das complexas combinações de talento criativo que há em cada compositor.
 
Como se a Vontade quisesse se exprimir por meio de Frédéric Chopin e isso resultasse num tipo de música, e ao se exprimir através de Richard Wagner resultasse em outro. O compositor é, ao seu modo, um instrumento, um filtro, um conjunto de possibilidades e de limitações. Quando a Vontade se manifesta por meio de cada um deles, os resultados têm que ser diferentes.
 
Fernando Pessoa, a quem a leitura dos gnósticos não era estranha, dizia que “Deus é o Homem de outro Deus maior”. E o Homem pode ser o “carinha”, o avatar de um Homem maior que se situa um degrau cósmico acima deste em que nós estamos, e cada um de nós é um desses carinhas que está sendo jogado no Videogame Megafísico de alguém.
 
Ou seja: talvez não exista um Deus onipotente, onisciente e onipresente, mas exista alguém indubitavelmente superior, que elaborou o programa que nos cria, e gerencia esta simulação que é o Mundo. É outro patamar.