terça-feira, 27 de abril de 2010

1966) Contracapa de email (27.6.2009)



& um dragão de papel que bota fogo pela boca & se um historiador do século 22 nos visitasse só faria perguntas que acharíamos idiotas & o futebol suíço é ruim daquele jeito porque lá é falta de educação pisar na grama & acordo com 90 anos e vou rejuvenescendo ao longo do dia & você só levanta um muro bom se der um nome e uma biografia a cada tijolo & um condomínio com grades em vez de paredes e pisos & com aquela cara de pária que foi parar em Paris & a tapioca ainda será a nossa pizza & um astronauta aborígine levando no capacete a gravura de um animal totêmico & assim era Penélope, bordadeira de dia, tesoureira de noite & tão banal como o som de fogos de artifício & um dia os bares serão ocupados apenas pelas estátuas em homenagem aos famosos que os frequentaram & ali, se um médico esquecer o bisturi dentro da paciente ele a denuncia por furto & a pata de uma ave guardada num bolo de aniversário & é melhor se arrastar ladeira acima do que rolar ladeira abaixo & um teclado eletrônico de vogais e consoantes & um escultor de sobremesas trocando idéias com um caçador de aviões submersos & um profeta é alguém que está olhando para o alto de um prédio e diz que daí a pouco vai aparecer algo na calçada & uma mulher com know-how de profissional e coração de amadora & a arte de pentear cometas & um daqueles coronéis que só são derrotados pelas coronárias & deviam inventar um telefone cujo toque sugerisse boas notícias & daqui a cem anos a América do Norte será habitada por um bilhão de chineses falando inglês estropiado & ele se dedica a fazer a volta ao mundo em bicicleta ergométrica & uma mulher vestida apenas com a minha fantasia & é mais fácil adquirir um produto do que ter uma idéia & quem nunca construiu uma casa popular que coloque a primeira pedra & literatura é fazer gol de placa num treino com estádio vazio & uma ampulheta e uma clepsidra usam cadências diferentes para marcar o mesmo tempo & a peleja da pirâmide com a floresta & é mais simples teorizar a prática do que praticar a teoria & botaram a Mona Lisa de bigodes no lugar da verdadeira e se alguém reparou não teve coragem de comentar & uma estátua nadando de olhos fechados & pássaro com asas de páginas & um mágico que só soubesse fazer aquilo de verdade, e fosse incapaz de fazer o truque & um CD-pentimento que a cada audição tocasse músicas mais antigas & um filme projetado nas pás de um ventilador & a banda tocando dentro do elevador de serviço e a platéia subindo correndo as escadas & depois da meia-noite, de cem em cem metros naquela avenida se desce um degrau na pirâmide sociológica & minha vida é meus baratos & quem será que vai morrer hoje? & até as pedras se encontram e até as águas se apartam & uma xícara cheia no fundo do mar & lençóis de mármore, almofadas de granito e o sono feliz da eternidade & viajar mil quilômetros, beijar teus pés e voltar &

1965) As redundâncias no português (26.6.2009)




Circula pela Internet uma lista de expressões em português que, segundo os missivistas, devem ser evitadas, pois são redundâncias tipo “subir para cima”, “entrar para dentro”, etc.

A lista é muito útil para redatores em formação, estudantes de jornalismo, etc. Algumas expressões são indiscutivelmente bobas. É o caso de se dizer: “duas metades iguais”, “anexo junto à carta”, “superávit positivo”, “planejar antecipadamente”, e outras.

Por que falamos assim? Na grande maioria dos casos é por mero reforço, confirmação, até incorrermos no tal do “pleonasmo”, palavra que parece significar uma doença do pulmão mas na verdade indica uma deformação, por exagero, do discurso verbal.

Um lembrete: “discurso verbal” não é redundância, é para lembrar que estamos nos referindo a qualquer expressão por meio de palavras. Serve para evitar confusão com outra acepção da palavra “discurso” que tem muito mais uso em nossa língua: o discurso político, eleitoral, etc.: “O senador fez um discurso descoordenado e trôpego, tentando defender-se das acusações”.

Voltando aos exemplos acima. Por que usamos esses reforços? Acho que é porque não temos certeza do significado de uma das palavras que usamos e precisamos colocar ao lado dela outra palavra com o mesmo sentido, para evitar dúvidas. (Ou então sabemos, mas temos receio de que nosso interlocutor não saiba.)

“Estou enviando os comprovantes anexos junto a esta carta...” Quem nos garante que o cidadão lá do outro lado, que não conhecemos, sabe o que quer dizer “anexo”? A presença do “junto” é um pequeno ato de tradução, produzindo uma espécie de discurso bilingue dentro do próprio idioma.

O mesmo vale para “superávit positivo” ou “déficit negativo”, embora neste último caso o idioma já tenha disseminado melhor o termo, com adjetivos como “deficitário”, etc.

Algumas formas criticadas me parecem defensáveis. Consta da lista a expressão “exceder em muito”, que para mim faz sentido. Uma medida ou contagem qualquer pode exceder um limite por muito pouco, ou por muito. A distinção é válida. “Não posso lhe dar um cheque de mil reais, isto excede em muito o meu saldo, que é de 150 reais”. É diferente de: “...isto excede o meu saldo, que é de 980 reais”. Quando algo apenas excede, basta um pequeno ajuste. Quando excede “em muito”, não tem solução.

O mesmo se dá com “fato real”, apontado como redundância. Pode ser excesso de sutileza de minha parte, mas eu preciso desse termo como contraposição a “fato fictício”. O primeiro aconteceu de fato; o segundo é algo que alguém supõe ter ocorrido mas o autor do discurso verbal questiona.

O naufrágio do Titanic é um fato real, e esta expressão o distingue de fatos fictícios como a queda de uma espaçonave alienígena em Roswell, EUA (que para mim não ocorreu), o assassinato de Napoleão (que imagino ter morrido de morte natural) ou o afundamento da Atlântida (que suponho nunca ter acontecido, pois ela não existiu).





1964) Twitterando (25.6.2009)



Me preveniram que é um máximo de 140 caracteres, mas não disseram se é com ou sem espaços, o que é uma grave lacuna em internetês. Mesmo assim, creio que essa limitação estilística não passa de uma “contrainte” para despertar nossa esperteza e precisão. O carvão comprimido numa super-prensa esmigalha-se sobre si mesmo e produz densas moléculas de diamante. Algo semelhante ocorre à linguagem quando comprime seus leques de significado num bloco compacto, auto-suficiente, completo em si mesmo. O Twitter foi inventado para dar aos fãs de alguém um flash eloquente, instantâneo, do que aquela pessoa está fazendo neste momento.

“Ora,”, direis, “mas a essência do Twitter é o acompanhamento, o toque que se recebe e nos dá a pista sobre os passos da pessoa”. Ou seja: é a interatividade que conta, o rastreamento, a possibilidade de fotografar à vida alheia como num Big Brother à distância. Mas – agora sou eu quem diz – de nada adiantaria isso se a gente não soubesse comprimir o essencial no obrigatório, o Todo numa fôrma. Produzir a frase exata no tamanho certo é arte do sonetista, do poeta do hai-kai, do telegrafista,do publicitário, do redator de manchetes. A veiculação, embora importante, foge à esfera do fato criador em si, pertence, se é mesmo o caso, à “estética da recepção”.

Há outras sutilezas a considerar. Quando falamos de um limite, falamos de um máximo. Um limite não atrai, apenas bloqueia. Se dizemos um máximo de 140 caracteres, não significa que cada trecho deva se esforçar para atingir esta marca. Trata-se de uma opção estética. Ritmo também conta. E ritmo se cria jogando com extensões, dosando repetições, variando intervalos. É como beber água: o copo estabelece um limite de volume, mas o que servimos e bebemos varia de acordo com nossa sede.

E, convenhamos, 140 caracteres dá pra dizer um monte de coisas. Grandes citações literárias cabem nesse limite aparentemente exíguo. Quem o estabeleceu provavelmente estava pensando numa relação com bytes de memória, mas não importa. O limite encontrado é um copo cuja água pode matar variadas sedes. “Mundo, mundo, vasto mundo... Se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução.” “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, e significando nada”. “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. “Eu canto porque o instante existe, e a minha vida está completa. Não sou alegre nem triste; sou poeta”. “O poeta é um fingidor; finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

O Twitter pode servir como uma agenda em movimento, um rastreamento do cotidiano. Mas nessa dimensão escolhida pelos programadores cabem grandes verdades, grandes momentos de poesia ou de filosofia popular. É como um buraco de fechadura deste tamanhinho, pelo qual a vista pode alcançar o mundo inteiro.

1963) “Budapeste”(24.6.2009)



O filme Budapeste, de Walter Carvalho, tem sido elogiado como a mais bem cuidada adaptação dos romances de Chico Buarque. Vi o filme sem ter lido o livro, o que hoje em dia considero a melhor maneira de ver. Quando já conhecemos a obra literária, na verdade não vemos o filme. Passamos a projeção inteira fazendo comparações, satisfazendo (ou frustrando) expectativas, e assinalando itens numa lista imaginária: “Isto apareceu... isso não apareceu... aquilo apareceu mas está mal feito...” Duvido muito que a maioria das obras resista a um escrutínio dessa natureza. Mesmo que seja elogiada e aprovada, não foi vista de fato – ficou submetida a uma relação triangular em que suas soluções estéticas nunca foram aferidas pelo que realmente são, mas pelo que parecem ser quando comparadas às soluções estéticas do livro.

O filme Budapeste é uma homenagem apaixonada à palavra, feito de imagens belíssimas. Pode ser que o livro de Chico seja um romance de frases muito belas, feito para louvar a palavra. Esse louvor irrestrito, apaixonado, deleitoso, está presente no filme impregnando a história de um “ghost-writer”. José Costa (Leonardo Medeiros) ganha a vida escrevendo livros para que outras pessoas os assinem e fiquem famosas por causa daquelas histórias e daquelas frases que não são suas. Toda a história se estrutura nesse jogo de dualidades: rosto-máscara, português-húngaro, frente-costas, cima-baixo, original-cópia... Um conceito básico reproduzido nestas e em outras variantes, de tal modo que a narrativa ganha uma imensa continuidade e consistência, sem se repetir. Tudo ali tem duas faces, dois lados, dois sentidos.

O filme tem um detalhe impressionante que transcende o livro. Vagueando por Budapeste, o ghost-writer vai parar na frente do Monumento ao Escritor Desconhecido, elogiado em francês por um guia para um grupo de turistas. Isto não aparece no livro: Chico Buarque, que jamais fôra a Budapeste antes de escrever o livro, afirma que desconhecia a existência dessa estátua na época em que escreveu. Para mim, é coincidência demais. Imagino que Chico, que tem uma cara danada de quem gosta de ler almanaques de cultura inútil, leu sobre essa estátua quando tinha 15 anos, e na hora de escrever o romance uma voz segredou-lhe que ghost-writer e Budapeste tinham tudo a ver. Não acredito em coincidências. Acredito que consciência e memória são diferentes coisas.

Como filme (deixemos de lado o texto original), Budapeste se sustenta pelo exame distanciado desse personagem dilacerado por contradições. Escreve muito bem (“seus” livros fazem sucesso) mas não consegue ser autor. Vive com mulheres deslumbrantes e é infeliz no amor. Foge do Rio de Janeiro e se mistura aos húngaros, que se auto-denominam “os cariocas da Europa”. Joga a própria vida fora e recupera apenas fragmentos dela ao dizer palavras como marimbondo, energúmena, adstringência.

1962) O tira-teima eletrônico (23.6.2009)



Jogos recentes pela Copa das Confederações tiveram lances importantes decididos pela arbitragem com a ajuda de elementos de fora do campo. No jogo Brasil 4x3 Egito, o último gol do Brasil surgiu de um pênalte que o juiz não viu, mas marcou, com atraso, depois de alertado pelo ponto eletrônico. O uso deste intercomunicador permite ao juiz dialogar com os bandeirinhas (ou, para usar a terminologia atual, permite ao árbitro dialogar com os auxiliares), o que a meu ver ajuda muito a corrigir possíveis distrações, equívocos, etc. Afinal, se o bandeirinha usa seu instrumento para assinalar uma infração, por que não pode usar um microfone para explicar o que foi?

Foi o que ocorreu no jogo Brasil 3x0 EUA, quando uma falta violenta de um jogador norte-americano nem sequer foi marcada pelo árbitro, que na sequência do lance, contudo, expulsou o faltoso. Ele foi claramente avisado pelo bandeirinha; inclusive, depois da expulsão, foi até lá e os dois trocaram umas palavras rápidas. Quanto a isto, tudo bem. O que mais se questiona, no entanto, é que no caso do pênalte cometido pelo jogador egípcio não foi sequer o bandeirinha quem o viu: foi o “quarto árbitro”, que recorreu ao replay da televisão. E aí começou a polêmica.

O presidente da Fifa, Joseph Blatter, já afirmou mais de uma vez que se recusa a permitir que a TV seja utilizada para orientar o árbitro. Diz ele que isso acabaria com a graça do futebol, que depende em grande parte de decisões quase instantâneas tomadas pelo juiz, as quais podem ser equivocadas, porque afinal ele não pode ver tudo, interpretar corretamente tudo. O futebol tem, assim, um componente imponderável, imprevisível, sujeito a erros, o que seria característico do esporte. Introduzir “tira-teimas” com TV iria amarrar o jogo, fazendo com que a cada instante o time que se sentisse prejudicado com uma marcação interrompesse o jogo para exigir verificação eletrônica.

Pode até ser, mas não acho que isso interrompesse ou tumultuasse um jogo mais do que já acontece quanto o juiz comete um erro claro, ou quando um lance é de difícil interpretação. Ou – o que é cada vez mais frequente – quando os jogadores tumultuam por tumultuar mesmo, porque querem ganhar as marcações na marra, no grito, na intimidação.

O basquete, por exemplo, tem a lateral da quadra ocupada por uma equipe de cronometristas, anotadores de faltas, etc., todos auxiliando o juiz principal em suas marcações. O futebol só teria a ganhar com isto. O único perigo que corremos é que a coisa desande, e cheguemos um dia a ter um futebol decidido não por gols, mas pela avaliação de juízes em mesas ao lado do campo (ou cabine blindada!). O número de gols marcados seria tão irrelevante quanto o número de escanteios. O júri iria anotando as estatísticas (posse de bola, passes certos, etc.) em pranchetas, e no fim daria seus votos, como nas lutas de boxe. Mas, enquanto isto não chega, seja bem vindo o tira-teima eletrônico.

1961) Uma Instalação: o Arco-Íris (21.6.2009)




"Listar as obras da optical art ou da chromo-art influenciadas por este clássico da instalação conceitual seria uma tarefa exaustiva. O uso de fenômenos ópticos para produzir efeitos estéticos tem uma longa tradição, e a instalação (de âmbito planetário) conhecida como Arco-Íris tem sido apontada por historiadores da Arte como matriz de muitas tendências atuais.

"O artista (anônimo) soube se cercar de precauções para garantir que haveria em sua obra um grau acentuado de (im)previsibilidade. De fato, todos sabemos em que circunstâncias será mais provável o avistamento de um Arco-Íris; mas nunca sabemos o momento exato em que ocorrerá, nem em que ponto deveremos nos postar por antecipação, na expectativa de vê-lo. 

"Esta hesitação entre o certo e o incerto traz uma imprevisibilidade quântica à Instalação. Faz-nos retroagir à descoberta da decomposição da luz solar através do prisma, por Isaac Newton. Leva-nos em seguida a refletir sobre o conflito entre a teoria corpuscular da Luz e a teoria ondulatória. E no espaço de alguns segundos, através daquela refração colorida, o que se desdobra aos nossos olhos, mais do que um simples leque de vibrações coloridas, é a rarefação do conceito de matéria e energia ao longo dos últimos 500 anos.

"O artista também preparou um cuidadoso “mix” de mídias que nos remete também à tradição grega dos Quatro Elementos. Fogo: o sol. Ar: o espaço onde a Instalação se projeta. Água: as gotículas de chuva que agem como prisma. Terra: o posto de observação de onde a Obra é fruída. 

"Esta tendência de aproveitar o material em-bruto da própria Natureza demonstra a crescente integração entre a Arte Contemporânea e o mundo físico, calando os protestos daqueles para quem a Arte de hoje seria fechada em si mesma, inacessível às massas.

"E não há como negar a habilidade do artista ao fazer diante dos nossos olhos um verdadeiro malabarismo conceitual entre contemplação versus interatividade, experiência coletiva versus experiência única. Amparada pelas descobertas científicas no campo de Óptica, a crítica mundial já fez correr muita tinta em torno da ambiguidade da experiência do Arco-Íris. 

"Coletivismo: no instante da produção de um Arco-Íris no espaço, centenas, talvez milhares de pessoas, agrupadas, podem afirmar que estão diante de um mesmo fenômeno, que se dá em coordenadas precisas do Espaço e do Tempo. Trata-se de uma fruição coletiva semelhante à de um filme, uma peça de teatro, um espetáculo musical. 

"Por outro lado, sabemos que quem define a visão do Arco-Íris é o ângulo preciso de onde cada observador individual percebe a Obra. A luz refratada na umidade do ar incide de forma única e irrepetível em cada par de retinas. O Arco-Íris de um não é (cientificamente falando) o mesmo Arco-Íris avistado por cada um de seus vizinhos mais próximos. 

"Tendências da Estética contemporânea: interatividade, unicidade da experiência. Obra personalizada, múltipla e única."