terça-feira, 22 de março de 2011

2510) A arte de fazer ressalvas (22.3.2011)





Um leitor me escreveu certa vez questionando alguma afirmação que fiz. Não lembro bem o que era, mas era uma dessas generalizações que a gente faz no meio de um texto, quando quer poupar conversa e ir logo ao cerne da questão. 

Digamos que tenha sido algo como “as idéias da ficção científica são inventadas pela literatura e popularizadas pelo cinema”. Não se pode sintetizar uma situação tão complexa num frase sem aparar milhares de pequenas arestas contraditórias, sem ignorar ou suprimir milhares de minúsculos exemplos que contradizem a generalização.  

Tudo que a gente fala pressupõe esse arredondamento. Quando digo que tudo que os Beatles gravaram é bom estou dizendo a verdade. Mas é uma verdade imprecisa, porque tem umas 20 ou 30 faixas que aqui pra nós são muito bobinhas ou incompetentes, mas, fazer o quê? O outro lado da balança pesa muito mais, e é para lá que vai a frase.

Não dá para comentar qualquer assunto sem fazer generalizações. A generalização não é feita por estupidez ou preguiça, mas para ganhar tempo, estabelecer um fato e logo passar adiante para comentar suas consequências, sem precisar se deter para reconhecer as numerosas instâncias em que aquele fato não vigora.  

É muito chato ficar lendo um autor cheio de minúcias, cheio de pontas-de-dedos, que fica o tempo inteiro antevendo críticas e defendendo-se contra elas, ao invés de dizer logo o que veio dizer.

Por outro lado, fazer ressalvas é importante quando se está tratando com assuntos delicados, que podem mexer com a suscetibilidade alheia. A gente escreve “os atores brasileiros não sabem fazer cena de bêbado”, e recebe, além de uma notificação hostil do Sindicato dos Atores, uma chusma de emails onde pesquisadores especializados nos apontam numerosas cenas que (para o gosto deles) estão ótimas. Melhor dizer: “Em geral, os atores...” 

Eu entendo. Se alguém disser algo generalizante e preconceituoso como “Todo paraibano é imbecil”, escreverei ao jornal uma carta de protesto, dizendo: “Mentira! Olhe o preconceito! Todos, menos eu!”.

Um famoso qualquer, acho que foi Goethe, afirmou certa vez na introdução de um dos seus livros algo como (não tenho o texto, estou parafraseando): 

“Peço ao leitor que não leve excessivamente ao pé da letra cada frase que ler neste livro. Estou fazendo afirmativas que, todas elas, admitem ressalvas e exceções; além disso, estou dando opiniões pessoais que de modo algum quero impor como verdades absolutas. Acontece que ficaria muito chato ler um livro no qual o autor está, em cada linha repetindo expressões como ‘geralmente’, ‘em grande parte dos casos’, ‘parece que’, ‘eu acho que’, ‘minha opinião é que’, e assim por diante. Portanto, sempre que se deparar com algo que parece questionável ou soa magisterial, coloque antes desse trecho alguma das expressões acima, ou outra equivalente. Foi nesse tom que a frase foi pensada e escrita.” 

E nada mais direi, nem me seja perguntado.



("Borges", de Adolfo Bioy Casares)