sexta-feira, 15 de agosto de 2008

0517) Claríssimo espectro (14.11.2004)




Era ininteligível à maneira das plantas, dessas trepadeiras que se expandem buscando a luz, que parecem imóveis, mas basta a gente ir lá dentro tomar um copo dágua que na volta ela já avançou mais um ladrilho. 

Perguntava um pouco o tempo inteiro. A caligrafia era tumultuada, evitava as linhas do caderno como se evita um tiroteio, as palavras dispersadas em várias direções por um terremoto silencioso.

Ainda hoje seu rosto é um mistério de olhos amendoados e malares salientes, cercado por penteados e roupas dos anos 50. Erguia o cigarro como se não lhe pertencesse. Escrevia em transe, aos arrancos, aos ziguezagues. 

Deus a definiu um dia como um círculo cuja circunferência estava em toda parte e o centro em nenhuma. Debatia-se na gosma espessa do tempo, retida no insuportável presente, vendo o calendário fluir à sua volta, escorrer sem remissão. Sua vida foi um afogamento. Suas mãos eram arcos e eram cordas.

Passou entre nós como um fantasma para o qual fôssemos nós os transparentes, nós e as forças que nos movem: paixão, coração, prazeres. Através da matéria, enxergava o balé das forças, a hierarquia inconstante das vontades, a fatalidade serena que impele a gota de chuva rumo ao chão e o chão rumo à gota de chuva. 

O destino descascou sua vida, enxaguou-a de tempestades, esboroando tudo menos a pedra lavrada das palavras.

Em volta dela, aonde fosse, movia-se aquele umbral. Falava de coisas ausentes como se estivessem sentadas ali naquela mesma sala. Óculos, xícara, leque, biscoito, batom: tudo isto era feito da mesma substância cristalina das mãos que os tocavam. Seu comércio com o mundo era solerte, na cumplicidade que as meras coisas mantêm entre si quando não estão sendo observadas.

Criava a loucura como quem cria um cachorro num apartamento. Aceitava o fato de que crescemos como uma árvore ao contrário, onde cada galho ramifica-se em outros galhos mais grossos, e estes em outros mais grossos ainda. Aceitava o gigantesco desperdício que é viver. 

Quando tinha insônia, aconchegava-se ao travesseiro e ao consolo de não estar numa madrugada fria, levando chuva num ponto-de-ônibus deserto. Tinha um corpo sem terra, uma mente sem teto. Escutava os pensamentos de todo mundo o tempo inteiro e não conseguia se concentrar nos seus. Pensava que ser todo mundo era uma obrigação, e que não estava sabendo se desincumbir direito.

Para ela, o ser e o não-ser eram as duas asas do ser. Via numa parede o que se vê nos espelhos, e via no espelho o que se vê nas janelas. Viveu separando com um bisturi as fibras do melodrama. 

Sobreviveu à própria infância. Passou a vida com um anzol cravado na língua da alma. Todas as noites um anjo a visitava, mas nunca lhe disse nada. O mundo passou por ela como o sol por uma peneira. Um sorriso oblíquo morava em sua boca, como se ela não soubesse que era apenas uma mulher feita de cacos de vidro.








0516) O ensaio incompreensível (13.11.2004)





Falei há alguns dias sobre o poema incompreensível, mas por uma questão de eqüidade devo falar também da crítica incompreensível. O estudo acadêmico da literatura tem ficado, a cada década que passa, mais invadido por uma mentalidade que pretende analisar textos literários com instrumentos teóricos abstrusos, manipulados através de um jargão dos mais obscuros.

A impressão que tenho (e não só eu) é que as faculdades, depois que foram tomadas pelo vírus pernicioso da Lingüística e do Estruturalismo, só sabem ensinar uma meia-dúzia de recursos de análise lingüística, e mais nada. Os alunos passam quatro anos queimando as pestanas para aprender a usar esses recursos, e quando se formam saem a aplicá-los às cegas em qualquer texto que lhes apareça pela frente. É como um estudante de Medicina que aprendesse a usar o bisturi, o escalpelo, o fórceps, etc., e ao se deparar com um doente se sentisse na obrigação de usar nele todos esses instrumentos, por ter sido a única coisa que lhe ensinaram na faculdade.

Hoje, abri ao acaso um livro de análise sobre um romance brasileiro, e o crítico iniciava um parágrafo da seguinte forma:

“Observamos no início desta análise a fusão actancial resultante da irrupção do actante da enunciação na narração, que se confunde desta maneira com o actante do enunciado, indicando ser esta fusão inevitável, dado o projeto do actante da enunciação de discursivizar, reproduzindo-a, a travessia vivida. Como dar a esta, que se constitui numa desintegração da identidade subjetiva, uma forma, se reproduzi-la implica não só um retorno ao que aconteceu, mas um retorno ao que instaura uma identidade, ao que a gera e garante enquanto tal, isto é, um retorno à linguagem, necessariamente afetada em seu ser nesta experiência?”

Entendeu, caro leitor? Pois vá a janela e solte um foguetão. Você merece. Não estou dizendo que o texto não faz sentido, porque provavelmente faz. É a linguagem que me incomoda. Parece aquelas brincadeiras em que a gente pega frases como “Pode tirar o cavalinho da chuva” e a transforma em “Digne-se trasladar seu eqüino de pequeno porte da intempérie”. Fujam todos. Corram, pelo amor de Deus. São monstros terríveis que estão vindo por aí. É o Ranço do Beletrismo! O Fetichismo das Prosopopéias! A Reiterância dos Proparoxítonos! A Recidiva Polissilábica! A Tecnologização da Discursividade Conceitual mascarando o Não-Ser da Coisa-Em-Si!

Esse pedantismo patético que acomete uma parte (felizmente só uma parte) da crítica literária pode ser combatido com doses generosas de textos inteligentes analisando textos inteligentes. Toda vez que se deparar com uma monstruosidade como aquele parágrafo acima, leitor, basta ler sem perda de tempo algumas páginas de O Castelo de Axel de Edmund Wilson, ou de Gregos e Baianos de José Paulo Paes, ou de Por que ler os clássicos de Ítalo Calvino, ou de No Bosque do Espelho de Alberto Manguel. Nem tudo está perdido.

0515) “O casamento de Romeu e Julieta” (12.11.2004)



O novo filme de Bruno Barreto, que deve estrear neste fim de ano, é uma divertida comédia onde a situação clássica de Romeu e Julieta (amantes que pertencem a famílias rivais) é transposta para a São Paulo de hoje. Julieta (Luana Piovani) pertence a uma família de torcedores roxos do Palmeiras, e ela própria é jogadora. Acaba se apaixonando pelo corintiano Marcus Ricca, que, para poder ter acesso à amada, finge torcer pelo Palmeiras, o que desperta a ira de sua própria família, toda ela de corintianos roxos. O filme tem bons momentos de comédia e bons momentos de captação do espírito do futebol, principalmente nos primeiros dez minutos, em que os personagens principais são as torcidas do Palmeiras e do Corinthians.

É engraçado que o futebol, uma das atividades mais definidoras do conceito de brasilidade, não tenha nem um grande filme nem um grande livro aqui no Brasil. Existem, é verdade, grandes documentários e grandes ensaios literários. Mas não temos um grande filme de ficção sobre futebol, e não temos um grande romance. Nunca entendi por que. O filme de Bruno Barreto, aliás, não é sobre o jogo de futebol, e sim sobre a psicologia do torcedor, o fanatismo, a rivalidade de torcidas. É sobre o futebol em volta do campo, e não dentro do campo.

O problema parece ser dentro do campo. A coisa mais difícil do mundo é encenar um jogo de futebol que pareça de verdade. O futebol é rápido demais, atravancado demais, muito cheio de esbarrões, de quedas, de coisas mal-feitas. Quando um roteirista descreve uma jogada e os atores-jogadores a ensaiam longamente, sai tudo tão certinho que parece videogame. Não engana ninguém. O espectador sabe, de cara, que aquilo não é um jogo, é uma porção de caras fingindo que estão jogando.

Isto é visível até em algumas tentativas mais ambiciosas, como o filme de John Huston Escape to Victory (1981), que imagina um jogo entre prisioneiros aliados e oficiais nazistas, durante a II Guerra. O time dos aliados é um “misto quente” de atores (Michael Caine, Sylvester Stallone) e jogadores (Pelé, o inglês Bobby Moore, o argentino Ardiles). O clímax do filme é um gol de bicicleta, mas como sempre acontece, tudo é ensaiadinho demais; falta aquela sensação de imprevisibilidade e de improviso que é um dos charmes de um verdadeiro jogo de futebol.

Mostrar futebol no cinema é como mostrar repentistas fazendo versos na literatura. Se um escritor escreve um conto onde acontece uma Cantoria de Viola, como passar para o papel aquela sensação de obra-se-criando, de coisa feita-na-hora, que é o cerne de uma cantoria? Os versos acabam saindo bem-feitinhos demais, não parecem improvisados. O leitor sempre fica com a sensação de que foi tudo ensaiado, tudo combinado, tudo preparado pelo autor para resultar da forma que resultou. Falta aquela vertigem da coisa acontecendo na hora, pela primeira e única vez, que é a grande magia da Cantoria e do Futebol.

0514) O irmão fantasma (11.11.2004)


("Narciso", Salvador Dali)

Certos detalhes pouco comuns em biografias me deixam inquieto. Durante muitos anos eu soube que o pintor Salvador Dali teve um irmão, também chamado Salvador, que nasceu antes dele e morreu logo em seguida. Seus pais ficaram muito abatidos, e quando tiveram o filho seguinte repetiram o nome, chamaram-no de “Salvador”, e o garoto cresceu com esta história. O que sente um cara nessa situação? Posso apenas especular. Ele pode crescer com a impressão de que nasceu, morreu e nasceu de novo; de que é uma reencarnação do primeiro filho, de que é uma única pessoa, que sofreu um acidente de percurso mas acabou prevalecendo. Pode também achar que é um mero substituto para alguém que era a “primeira opção” de seus pais, e passar a infância achando-se uma pessoa sem valor, um mero reserva que só entrou em campo por contusão do titular. Não sei o que Salvador Dali pensava sobre isso, mas sempre achei que esse detalhe tinha uma importanciazinha no fato dele ser doido. (Porque “normal” é que ele não era mesmo)

Depois fiquei sabendo que uma coisa parecida aconteceu com Van Gogh. Seus pais tiveram um filho a que dariam o nome de “Vincent Willem Van Gogh”, usando os prenomes dos dois avós. Acontece que o garoto nasceu morto. Foi enterrado, os pais fizeram uma nova tentativa e (ao que parece) o segundo garoto nasceu exatamente um ano depois do primeiro, em 30 de março de 1853, e recebeu exatamente o mesmo nome. Diz-se que todos os dias ele passava em frente ao cemitério da família (seu pai era pastor) e via um túmulo com seu próprio nome escrito. Será que isto teve influência em sua loucura posterior, ou foi apenas algum problema genético? Há uma interessante discussão sobre o perfil clínico de Van Gogh no saite do American Journal of Psychiatry, em: http://ajp.psychiatryonline.org/cgi/content/full/159/4/519.

Conversa vai, conversa vem, e um belo dia eu folheava o livro de Pedro Karp Vásquez Na Trilha da Pantera Cor-de-Rosa (Rocco, 2002), no qual me deparo com um dado curioso sobre Peter Sellers. Este grande ator e fantástico imitador de vozes alheias nasceu em 8 de setembro de 1925, e foi batizado com o nome de Richard Henry Sellers. Acontece que seus pais, um casal de atores de vaudeville, tinham tido um filho anterior chamado Peter, que nasceu morto. Começaram a chamar o novo filho de “Peter”, e não é que o nome acabou pegando?

Existe uma raridade médica a respeito de irmãos gêmeos. Durante o seu tempo no útero, acontece às vezes que um deles não se desenvolve, estaciona numa forma microscópica de embrião, e fica alojado no corpo do outro, que nem sabe de sua existência. Não quero parecer mais maluco que meus três personagens de hoje, mas será que existe algo parecido com as almas? Será que acontece às vezes de uma delas ficar incrustada na alma de um irmão que vem depois, e estas duas almas em conflito transformarem o cara num louco e num gênio?

0513) Delírio no andar de cima (10.11.2004)


("O assassinato de Marat", J. J. Weertz)
Não sei se essas coisas são noticiadas na Paraíba. Tomara que não sejam, porque poupa aos paraibanos o desprazer de constatar mais uma vez a estupidez humana. Mas, pensando bem, tomara que sejam, para que possamos nos consolar pensando que a estupidez humana não é privilégio nosso, está eqüitativamente distribuída por todo o território nacional.

Fato 1: Os jornais noticiam que, semana passada, em Petrópolis (RJ) um garoto de 7 anos arengou com uma coleguinha na escola e os dois meteram a merendeira na cabeça um do outro. O pai da menina deu queixa à polícia, e um oficial de justiça foi à casa do menino, intimando-o a ir prestar depoimento na delegacia.

Fato 2: Semanas atrás, num restaurante chique da Zona Sul do Rio, uma madame reclamou do charuto do cara da mesa vizinha. O cara disse que as mesas deles estavam na área de fumantes. A mulher insistiu, houve um bate-boca que foi aumentando de tom. A mulher julgou-se ofendida, anunciou que era mãe de uma Delegada, e passou a mão no celular. Minutos depois, dois ou três viaturas chegaram ao restaurante, com policiais armados, encapuzados, aquela SWAT toda, parecia cena de “Casseta & Planeta”. Tentaram prender o sujeito, que passou a mão na carteira e mostrou que era oficial aposentado das Forças Armadas: “Preso é que eu não vou”. Uma operação-de-guerra por causa de um charuto.

São dois sintomas do que eu chamo de “O Delírio do Andar de Cima”. A Revolução Francesa inventou ou pôs na roda uma porção de ideais democráticos e republicanos, direitos civis, etc. e tal. E esse arsenal ideológico foi apropriado pela elite do nosso país (à qual pertenço, e provavelmente você também, caro leitor). Vai daí que toda vez que um mosquito pousa no calo de alguém do Andar de Cima, toda a máquina jurídico-policial do país é mobilizada, porque foi ofendido um Cidadão. Essas pessoas têm uma noção desproporcional da própria importância. E sabem que basta dar uma carteirada ou ligar para um amigo influente para que todo o aparato tribunalício do País seja chamado para espantar o mosquito.

Será que eu sou contra as liberdades democráticas e o exercício da cidadania? De jeito nenhum. Mas episódios como estes que descrevi mostram a situação de delírio social em que vive o Andar de Cima. Direitos civis são um bem escasso, disputado a tapa pelos cinco por cento que mandam no País e pelos 15 ou 20% que brigam para fazer parte dos cinco. Existem no papel, existem no blá-blá-blá da imprensa, mas não existem de fato para todo mundo. É como aquela história do repórter de TV que chegou lá no sertão do Seridó, ou noutro lugar que estava sofrendo uma seca braba. O cara entrou num casebre miserável, cheio de crianças doentes, e depois de alguma conversa perguntou a um menino o que ele gostaria de ser. E o menino disse: “Eu queria ser um mico-leão dourado, porque tem tanta gente querendo cuidar deles!”

0512) É pra ontem! (9.11.2004)



Virou moda, a partir de uma certa época neste país. Alguém lhe encomenda um trabalho, você pergunta “para quando é”, e o sujeito diz, eufórico: “É pra ontem!” É engraçado, mas quem diz isso sempre diz com um ar de alegria, de satisfação. Certamente porque não sabe da injeção de ácidos corrosivos que está desencadeando no organismo de quem tem o hábito de fazer as coisas bem-feitas. Durante algum tempo usei uma resposta pronta: “Se é pra ontem, então já entreguei. Cadê minha grana, que é pra hoje?” Mas não adianta. Quem utiliza aquela pérola verbal são em geral pessoas para quem as coisas têm de ser feitas o mais rapidamente possível para que elas possam riscá-las de sua lista de tarefas. Se vão ficar bem-feitas ou não, é problema do cara que as está fazendo, e não delas, a quem cabe apenas pressionar para que sejam feitas.

Já virei a noite para entregar um texto às 8 da manhã, somente para descobrir depois que esse texto, cheio de imperfeições ou de dados que não tive tempo de conferir, dormiu placidamente durante uma semana sobre a mesa do contratante, que na verdade nem tinha tanta pressa assim. Queria apenas ter a certeza de que quando o patrão dissesse: “E o texto de apresentação, já mandou fazer?” ele estendesse as folhas: “Já está pronto!”, ganhando com isso um erguer aprovativo da sobrancelha, e quem sabe alguns pontos rumo a uma promoção futura.

O perfeccionismo, como tudo no mundo, pode ser tanto uma qualidade quanto um defeito. E só é útil, como tudo no mundo, se for temperado pelo bom senso. O cara deve saber quando está burilando demais, e deve saber quando de fato precisa de mais um dia. Prazo de entrega é um dos maiores incentivos à criação artística em todos os tempos. Se não existissem prazos de entrega, Michelangelo estaria retocando a Capela Sistina até hoje. Quando um Artista (ou um Profissional, que não é menos importante que um Artista) está focalizado, sabe o que quer, está com todas as luzes da mente acesas, o prazo de entrega é uma adrenalina a mais. É conhecida dos leitores de rock a história sobre Bob Dylan durante a gravação de “Blonde on Blonde”, indo para o estúdio no banco traseiro do carro, de caderneta em punho, finalizando quatro canções ao mesmo tempo.

Tudo pode ser melhorado, mas chega um momento em que tudo tem que ser finalizado e entregue. Borges dizia: “Publicamos um livro para poder parar de mexer nele.” O primeiro texto produzido tem que ter um piso-mínimo de qualidade; tem que ser publicável, mostrável, satisfatório. Se der para melhorar, melhor. Depois de uma certa época, comecei a encarar de forma positiva o “é pra ontem”. Digo para mim mesmo: “É uma fórmula mágica que me dispensa da perfeição.” Se fosse pra amanhã (penso), eu entregaria uma obra-prima. Mas é pra ontem? Pois era assim que eu escrevia ontem. Melhor do que isto, só se me der mais uma semana de prazo. E se me pagar o dobro.