Era ininteligível à maneira das plantas, dessas trepadeiras que se expandem buscando a luz, que parecem imóveis, mas basta a gente ir lá dentro tomar um copo dágua que na volta ela já avançou mais um ladrilho.
Perguntava um pouco o tempo inteiro. A caligrafia era tumultuada, evitava as linhas do caderno como se evita um tiroteio, as palavras dispersadas em várias direções por um terremoto silencioso.
Ainda hoje seu rosto é um mistério de olhos amendoados e malares salientes, cercado por penteados e roupas dos anos 50. Erguia o cigarro como se não lhe pertencesse. Escrevia em transe, aos arrancos, aos ziguezagues.
Deus a definiu um dia como um círculo cuja circunferência estava em toda parte e o centro em nenhuma. Debatia-se na gosma espessa do tempo, retida no insuportável presente, vendo o calendário fluir à sua volta, escorrer sem remissão. Sua vida foi um afogamento. Suas mãos eram arcos e eram cordas.
Passou entre nós como um fantasma para o qual fôssemos nós os transparentes, nós e as forças que nos movem: paixão, coração, prazeres. Através da matéria, enxergava o balé das forças, a hierarquia inconstante das vontades, a fatalidade serena que impele a gota de chuva rumo ao chão e o chão rumo à gota de chuva.
O destino descascou sua vida, enxaguou-a de tempestades, esboroando tudo menos a pedra lavrada das palavras.
Em volta dela, aonde fosse, movia-se aquele umbral. Falava de coisas ausentes como se estivessem sentadas ali naquela mesma sala. Óculos, xícara, leque, biscoito, batom: tudo isto era feito da mesma substância cristalina das mãos que os tocavam. Seu comércio com o mundo era solerte, na cumplicidade que as meras coisas mantêm entre si quando não estão sendo observadas.
Criava a loucura como quem cria um cachorro num apartamento. Aceitava o fato de que crescemos como uma árvore ao contrário, onde cada galho ramifica-se em outros galhos mais grossos, e estes em outros mais grossos ainda. Aceitava o gigantesco desperdício que é viver.
Quando tinha insônia, aconchegava-se ao travesseiro e ao consolo de não estar numa madrugada fria, levando chuva num ponto-de-ônibus deserto. Tinha um corpo sem terra, uma mente sem teto. Escutava os pensamentos de todo mundo o tempo inteiro e não conseguia se concentrar nos seus. Pensava que ser todo mundo era uma obrigação, e que não estava sabendo se desincumbir direito.
Para ela, o ser e o não-ser eram as duas asas do ser. Via numa parede o que se vê nos espelhos, e via no espelho o que se vê nas janelas. Viveu separando com um bisturi as fibras do melodrama.
Sobreviveu à própria infância. Passou a vida com um anzol cravado na língua da alma. Todas as noites um anjo a visitava, mas nunca lhe disse nada. O mundo passou por ela como o sol por uma peneira. Um sorriso oblíquo morava em sua boca, como se ela não soubesse que era apenas uma mulher feita de cacos de vidro.