sábado, 9 de julho de 2022

4841) A inspiração para escrever (9.7.2022)




“De onde vocês tiram as idéias para as histórias que escrevem?”
 
É a pergunta que um escritor mais escuta durante a vida. Jornalistas, crianças, leitores em geral, colegas em início de carreira... todo mundo quer saber de onde vêm as idéias.
 
Minha resposta, hoje, é: "Minhas idéias vêm das idéias dos outros."
 
Vêm da vida real, também; mas é mais frequente virem dos livros que a gente lê, dos filmes que a gente vê. Quando a gente está lendo um livro, o aplicativo “Detetor de Boas Idéias” está ligado e em pleno funcionamento. Na vida real, às vezes acontecem coisas extraordinárias diante dos nossos olhos, mas estamos preocupados com outros detalhes.
 
Um amigo meu sofreu um “sequestro relâmpago” que durou horas. Foi levado a caixas eletrônicos, sacou dinheiro sob revólver, aquele pesadelo todo.
 
“Houve um momento,” disse ele depois, “o carro parado no trânsito, a arma encostada nas minhas costelas, que pensei: isto aqui daria um conto. Mas agora que passou não lembro mais de nada, ou pelo menos de nada que consiga escrever. É como se tivesse acontecido com outra pessoa. É uma experiência que não bate com o dicionário.”
 
Lendo um livro, a gente já pega a idéia com um mínimo de formato. A arte está em saber pegar essa idéia e torná-la nossa. Virar pelo avesso, decompor e recompor as partes, descartar o que é muito característico do autor original, ampliar um detalhe, obscurecer outro. Mas mantendo a chama, a vibração que nos fez pensar: “Opa, aqui tem uma idéia massa, que eu posso adaptar para o meu jeito de escrever.”
 
Muitos leitores de Stephen King curtem a série “A Torre Negra”, um ciclo de oito romances fantásticos que King levou mais de vinte anos para completar. A ação transcorre principalmente no futuro, numa Terra devastada, cheia de escombros da civilização. Há viagens no Tempo, há ambientação de faroeste (pistoleiros, etc.), há incursões pela nossa época atual, em flash-backs ou em viagens temporais.
 
De onde King tirou sua inspiração para essa série de FC pouco convencional?  Por incrível que pareça, ele queria escrever uma “resposta” a O Senhor dos Anéis, que leu aos dezenove anos e que virou sua cabeça, como a de muitos outros. Mas ele não queria repetir o livro de Tolkien. Ele diz que a resposta lhe veio quando assistiu O Bom, o Mau e o Feio de Sérgio Leone, e percebeu a dimensão épica daquele faroeste, que para a sensibilidade dele tinha a mesma dimensão da fantasia de Tolkien. Ele diz:
 
Percebi que o que eu queria escrever era um romance que tivesse o mesmo sentido épico e mágico de Tolkien, mas cuja história acontecesse naquele ambiente do Oeste, majestoso, absurdo.
 
E assim, pegando dois universos praticamente irredutíveis um ao outro (Tolkien e Sergio Leone), ele construiu o seu próprio épico – que deve a ambos, e não se parece com nenhum.
 
Somente um escritor maduro tem essa capacidade. King não é apenas o fã entusiasmado, desejoso de escrever as histórias que lhe dão prazer como leitor. É um autor. Tem luz própria, e projeto próprio.
 
O saudoso editor Gardner Dozois, da revista Asimov Magazine, disse certa vez numa entrevista à Locus (dezembro 1997, #443):
 
Às vezes o material de um gênero precisa ser reinventado para ser apreciado esteticamente por uma nova geração de leitores. Lembro de ter conversado uma vez com Samuel Delany, e ele disse que em seu romance Nova estava tentando reinventar Alfred Bester e seu The Stars My Destination num formato mais esteticamente apropriado para a sua geração. E anos depois conversei com William Gibson, e ele me disse que o que estava tentando fazer era reinventar The Stars My Destination para a geração dele!
 
Isso mostra o peso que o romance de Bester (um clássico de 1956) teve sobre gerações sucessivas. Merecidamente, aliás – o livro saiu aqui no Brasil pela Brasiliense, com o título de Tigre! Tigre! 


 


Delany estava publicando Nova em 1968, e Gibson começou a publicar sua série de romances cyberpunk em 1984. Estavam imitando Bester? Não. Mas perceberam de onde vinha o impacto de novidade, de maravilhamento e de expansão da consciência que Bester conseguia produzir com seu texto. Entenderam o espírito. Estudaram a técnica. Criaram obras que em nada se assemelham ao livro de Bester – mas que têm um impacto semelhante.
 
Nossas idéias vêm das idéias alheias, mas muitas vezes temos a percepção de que ficamos fãs do livro tal porque o autor fez tais e tais coisas – e essas tais-e-tais-coisas podem ser adaptadas em contextos ou temas muito diferentes. É aí que entra a criatividade de cada um – Stephen King fugiu da fantasia medieval e criou uma fantasia de faroeste.
 
E por falar nisso, quando Alfred Bester escreveu The Stars My Destination, fez uma deliberada adaptação do enredo de O Conde de Monte Cristo (1844), de Alexandre Dumas. O saudoso José Paulo Paes, em sua coletânea de ensaios Gregos e Baianos (Ed. Brasiliense, 1984) faz uma excelente análise, usando o exemplo de Bester, de como essas grandes histórias sempre podem servir de ponto de partida para grandes histórias alheias.