quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

2488) “O Retrato de Dorian Gray” (24.2.2011)



As sincronicidades são as rimas da vida real. Estão para ela assim como a simetria está para as artes visuais. No cinema temos dois tipos de rima. Podemos cortar entre imagens parecidas com idéias diferentes: em Viridiana, Buñuel corta de uma coroa de espinhos para um disco tocando na vitrola; em 2001 Kubrick corta de um osso flutuando no ar para uma nave flutuando no espaço. Ou podemos cortar entre imagens diferentes com idéias parecidas: Hitchcock corta de um casal na cama para um trem entrando num túnel.

Costumo ler livros e ver filmes sem planejamento, mas sem dúvida existe um impulso subterrâneo me levando a procurar obras que, quando justapostas, produzem uma fagulha. A fagulha do presente caso foi produzida pelo fato de, enquanto estou relendo O Médico e o Monstro de R. L. Stevenson ter assistido o DVD de O Retrato de Dorian Gray de Albert Lewin, adaptando o livro de Oscar Wilde. Estes dois textos são clássicos do romance fantástico vitoriano e são, por assim dizer, duas variações sobre o mesmo tema. Algo que poderia ser expresso no antigo slogan da série O Sombra, de Maxwell Grant: “Quem sabe o Mal que se oculta no coração do homem? O Sombra sabe”.

Em ambos os casos, um respeitável cidadão britânico mantém uma fachada de indivíduo exemplar enquanto se dedica a prazeres indescritíveis e crimes imperdoáveis. No livro de Stevenson, ele o consegue através de uma poção que o transforma fisicamente em outra pessoa, um corpo físico que corresponde a uma parte de sua mente onde habitam os “baixos instintos”. No de Wilde, essa divisão é simbólica: Dorian Gray pratica os piores excessos e ao longo dos anos permanece jovem e belo como sempre, ao passo que é seu retrato quem envelhece e decai. Há certamente outras obras com perfil semelhante, mas eu diria que, principalmente no mundo de língua inglesa, estas duas novelas tão curtas criaram o padrão para as histórias de dualidade entre virtude aparente e pecado oculto.

Somos tentados a dizer que isso é a cara da Londres vitoriana, mas os exemplos contemporâneos mostram que a coisa vai mais longe. Talvez os mais conhecidos sejam Psicopata Americano (livro de Bret Easton Ellis, filme de Mary Harron) e Clube da Luta (livro de Chuck Palahniuck, filme de David Fincher). Em ambos, um sujeito extremamente comum e enquadrado no mundo corporativo desenvolve uma segunda personalidade agressiva, sádica e impossível de controlar, um “monstro do Id”, instinto puro, auto-gratificação pura. Nestas obras ficamos sabendo em detalhe quais os atos escabrosos praticados pelos modernos Dr. Jekyll e Dorian Gray, atos que a discrição da época não permitia aos escritores mostrar de maneira gráfica, explícita. Ainda somos vitorianos. Mesmo na mais permissiva das sociedades, ainda existe espaço para a cisão da personalidade entre um “cidadão acima de qualquer suspeita” e um monstro – ou, como disse Olavo Bilac, “um demônio que ruge e um deus que chora”.