quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

3121) Ser cineclubista (28.2.2013)





Minha vida de cineclubista ocorreu entre os 16 e os 30 anos. Nesse período eu tive várias atividades cinéfilas, nas cidades onde morava: Campina Grande, Belo Horizonte, Campina Grande de novo, Salvador. 

Mesmo quando não era um cineclube, era o espírito de cineclube que inspirava essas atividades. O espírito de amar o cinema, gostar não somente dos sofisticados e ambiciosos “filmes de arte”, mas de qualquer coisa besta relacionada ao cinema: o barulhinho treme-treme da película 16mm vibrando diante da luz, o cheiro ácido que se elevava das latas de filme ao serem abertas, a contagem regressiva da ponteira riscada que precedia o filme propriamente dito, a música que tocava antes da abertura das cortinas... 

A relação amorosa (eu quase diria: a relação sexual) entre nossa mente e aquela imagem luminosa gigantesca preenchendo o mundo à nossa frente. Uma relação ao mesmo tempo de desejo e desafio, entrega e controle. Por um lado, deixar-se embeber pelo filme, e por outro domesticar e subjugar o filme através de fórmulas mágicas criadas por mim mesmo, como estas linhas que escrevo agora.

Para os incréus, um cinéfilo é um intelectual pedante que diz entender filmes que ninguém entende, inclusive ele. Mas o cineclubista ou cinéfilo é o cara que não visa apenas “entender o filme”. Ele quer alcançar a vida que há por trás do filme. 

Mesmo que os simbolismos ou hermetismos de Bergman ou Godard continuem sendo grego para ele, ele pode, mergulhando no estudo de Godard ou Bergman, entender quem são esses caras, e o que são os filmes que fazem. Um cinéfilo olha uma cena e vê algo além do retângulo luminoso que é tudo que o espectador comum enxerga. Ele percebe como aquilo foi feito tecnicamente. Ele sabe que aquele movimento de câmara deve ter exigido dias de ensaio. Ele entende que certo efeito de iluminação não está ali por acaso, foi discutido noites a fio ao redor de uma mesa.

O cinéfilo vê o filme e espreme o sumo do prazer estético do filme, sabendo, ao mesmo tempo, o sangue, o suor e as lágrimas (para não falar nos dólares e nos reais) que aquele filme exigiu de quem o fez. 

O público vê o drama dos personagens; o cinéfilo deduz, do que vê na tela, os dramas de toda aquela longa ficha técnica cujas funções ele conhece. Ele sabe dos bastidores, dos camarins, entende a luta pelo poder que resulta num diálogo, numa cena, num corte. O público se emociona com a história, vê o filme como se o vivesse. O cineclubista se emociona com a história dos que contaram essa história vista pelos outros. Ele vê a vida por trás do filme, e com isso aprende a ver a vida por trás da vida.







quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

3120) O olê e o olá (27.2.2013)




Estávamos tocando violão num terraço. No meio do pot-pourri, não me perguntem como, cantamos “Mulher Rendeira”. Depois, na hora do “o-tocador-quer-beber”, um estrangeiro fluente em português, amigo dos donos da casa, perguntou o que era “mulher rendá”. A gente se safou dizendo que o verso dizia: “mulher, rendar!”, algo como: “mulher, tá na hora de fazer renda!”. 

Não sei se ele acreditou. Eu (que dei a explicação) não acreditei. Fiquei matutando e tenho uma teoria.

É uma constante na música brasileira a presença de versos, títulos, refrões (principalmente refrões) que constam de dois elementos, um terminando em “Ê” e o outro terminando em “Á”. 

Acho que o mais típico é o famoso refrão do samba do Salgueiro em 1971, “Festa para um rei negro”: “Ô-lê-lê, ô-lá-lá, pega no ganzê, pega no ganzá” (ouça aqui: http://bit.ly/dUgjM.) Tão famoso que hoje é cantado (com outra letra, claro) pela torcida do Barcelona. 

Tanto quanto o “rendá” do exemplo anterior, o “ganzê” é uma palavra que em princípio não existia, entrou apenas para compor o dístico. Pega bem no ouvido do povo essa sequência de sons, ê-á, ê-á. Pega bem no meu ouvido, pelo menos – e imagino que pegue bem no da galera, pela quantidade de exemplos que tem por aí.

Chico Buarque se consagrou, aos meus ouvidos, não com “A banda”, mas com “Olê Olá” (“Não chore ainda não / que eu tenho um violão / e nós vamos cantar...” – em: http://bit.ly/dUgjM), a canção que deixou pelo menos uma frase-feita na língua brasileira: “a noite é criança, o samba é menino”.  

João Bosco tem o ótimo “Odilê, odilá... / Que que vem fazer aqui meu irmão? / Vim sambar” (em: http://bit.ly/7s1cw1). E reparem como mais uma vez um dos termos parece fazer sentido na frase e o outro não, porque “odilá” pode ser uma saudação à distância como “ó de lá”, uma possível resposta para “ó daqui!”; e o “odilê” não parece ter sentido verbal, o sentido é apenas melódico, para compor o dístico sonoro. 

Sem esquecer, aqui pertinho, Beto Brito com seu “Imbolê”: “Tá o maior imbolê / tá o maior imbolá / em me embolei com você / ninguém vai desembolar...” (em: http://bit.ly/9PsSNr).

Exemplos brasileiros são incontáveis, mas no remexer da cachola fiquei pensando: o “Ob-La-Di, Ob-La-Da” dos Beatles não obedeceria a uma lei sonora parecida? Ao que se diz, MacCartney pegou esse refrão de um amigo jamaicano que vivia zanzando em Portobello Road. 

Falta o “Ê”, concordo, mas aí está o dístico meramente melódico, uma simples melopéia poundiana, rabisco sonoro sem intenção verbal, terminando em “á”... Resíduo africano, de cantilenas, ladainhas, estribilhos tribais? Um assunto a se pensê, um assunto a se pensar.




terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

3119) "O céu dos suicidas" (26.2.2013)






Já falei aqui, de vez em quando, num tipo de sujeitos que em Campina Grande a gente chama de “pertubados” (assim mesmo, sem um R). O “pertubado” é o sujeito atormentado por algo que nem ele nem ninguém sabe o que é. Uma infelicidade que o rói por dentro e o deixa instável, sujeito a ataques súbitos de irritação ou de fúria inexplicável. É um cara à beira de um ataque, eu não diria de nervos, mas de violência que ele próprio, no dia seguinte, não vai compreender. Há alguns retratos de “pertubados” na literatura. Charles Bukowski, Campos de Carvalho, Rubem Fonseca são os primeiros autores que me ocorrem que já mostraram personagens assim – problemas ambulantes, frascos de nitroglicerina prontos a explodir ao menor solavanco.

Um exemplo recente é o protagonista de O céu dos suicidas de Ricardo Lísias (Alfaguara, 2012), que tem o mesmo nome do autor. É um desses romances que correm o perigo de serem abandonados logo no começo da leitura, porque as primeiras 40 páginas são de uma tremenda monotonia. O cara é colecionador de selos, de tampinhas de garrafa, de outras coisas; é meio introvertido e macambúzio, e fala o tempo inteiro em coisas irrelevantes, repisando insistentemente detalhas sobre suas coleções... Todo colecionador faz isso; sou meio colecionador também, e conheço a compulsão de comentar, com estranhos, coisas que não lhes interessa nem um pouco. O livro vai se arrastando... até que Ricardo tem a primeira explosão.

Só nesse momento percebemos o que acontecia por trás daquela dureza, daquela falta de jogo de cintura. Revela-se que Ricardo é um transtornado, ovelha negra da família, criador de problemas, desencadeador de crises. Um dos motivos disso é o fato de ter expulsado do apartamento seu melhor amigo, André, que se enforcou dias depois. Ricardo acha que a culpa é dele, e uma dúvida o corrói: os suicidas vão para o céu?

A linguagem do autor faz o tempo inteiro, com enorme controle, um movimento de prende-e-solta, mostrando a auto-contenção de Ricardo tentando viver uma vida normal até que alguém diz uma vírgula fora do lugar e ele derrama sobre o interlocutor atônito uma saraivada de palavrões cabeludos e de insultos humilhantes. Poucas vezes a mente do “pertubado” foi descrita, ou melhor, reconstituída com tanta verossimilhança. É difícil não se comover com a tragédia de um rapaz que não é mau, mas cruza a vida como uma catástrofe engatilhada para si e para os outros. “O céu dos suicidas” é um romance (uma noveleta, na verdade) de capítulos todos do mesmo tamanho, como itens de coleção dispostos lado a lado para atenuar o tumulto de revolta e desorientação que ferve sob a superfície.



domingo, 24 de fevereiro de 2013

3118) O Convertido (24.2.2013)




Todos nós conhecemos o tipo. 

Pode ser o sujeito farrista e raparigueiro que um belo dia descobre a Bíblia e o culto de domingo à noite.  

Pode ser o rapaz de boa família burguesa que a certa altura descobre os livros de Marx e Che Guevara e fica rodando pela cidade atrás de companheiros para fundar uma célula subversiva e tomar lições de tiro ao alvo. 

Pode ser o pai de família discreto e moralista que na meia-idade começa a sair com uns rapazes exuberantes e em breve separa da mulher, vai morar com um deles, e passa a soltar a franga como quem quer tirar décadas de atraso. 

Pode ser o oposicionista implacável que sempre castigou com seu látego verbal todos os sucessivos governos mas de repente deixa-se cooptar por um deles e agora vive bordando elogios e mensagens de otimismo à mera menção do nome do caudilho da vez.  

Pode ser o beberrão incontinente que depois de anos de vexame descobre uma terapia qualquer, cura-se e passa ser o arauto da temperança e da sobriedade, pra quem até um carro a álcool é um passaporte para o inferno.

Os exemplos são tantos que acabam convergindo todos para uma coisa só. O Convertido é simplesmente um radical que só sabe ser radical; sente tal volúpia na própria radicalidade que pouco importa em nome de quem ou do quê ela esteja sendo praticada. Depois que esgota um lado do problema, ele arregaça as mangas e começa a se dedicar ao outro.

A questão mais interessante é, para mim, a facilidade com que o cara se converte, a absoluta sinceridade com que o faz, e a felicidade esfuziante que experimenta com essa mudança. 

Na verdade, o Convertido é um sujeito que nunca havia se dado o trabalho de prestar atenção no lado oposto. Fez sua primeira escolha muito cedo na vida, ou talvez seja melhor dizer que a escolha foi feita por ele, e ele a aceitou, porque, como todo jovem, estava pensando noutra coisa. O tempo o fez roer essa outra coisa até os ossos. Instalou-se um vazio nele, e em volta dele.  

Um belo dia, sucedeu algo que o fez pela primeira vez prestar atenção naquelas pessoas a quem detestava ou desprezava, com quem se recusava a dialogar, e cujos argumentos desconhecia. Esses novos argumentos preencheram aquele vazio, fizeram-no abrir os olhos para um milhão de coisas novas que o invadiram por um flanco desguarnecido. A ficha caiu. 

Aliás, era um tal cair de fichas uma atrás da outra que o sujeito acabou se convertendo justamente àquelas idéias que se esforçara para ignorar, com as quais nunca debatera, aquelas idéias que nunca examinara, aquelas idéias para as quais ele sempre fechara os olhos e os ouvidos – vai ver porque sabia que era daquilo mesmo que estava precisando.



sábado, 23 de fevereiro de 2013

3117) O gozo da santa (23.2.2013)




(Bernini, "Êxtase de Santa Teresa", detalhe)


Uma piada irreverente diz que o lugar mais religioso do mundo é o Motel, porque se alguém pudesse sair escutando às portas ouviria em todas elas alguém gemendo: “Ai meu Deus... ai meu Deus do céu... ai minha Nossa Senhora... valei-me meu Jesus...”. Não é desrespeito, minha gente; aliás, se quem está por trás daquelas portas são casais cristãos e cheios de fé, melhor dizerem isso do que dizerem aquelas outras coisas impublicáveis que nos ocorrem nesses momentos.

O êxtase religioso e o êxtase sexual são um tema antigo na arte, e me referi dias atrás nesta coluna ao poema de Manuel Bandeira onde ele comenta a “transverberação” (=trespassamento) do coração de Santa Teresa de Ávila. Esta santa escreveu algumas das páginas mais belas da poesia cristã, junto com as de San Juan de la Cruz. Não li muitos poemas dela, mas sua sensibilidade e sua agudeza psicológica me lembram Emily Dickinson ou Cecilia Meireles.

A transverberação é um episódio biográfico em que ela assim descreve a visitação que recebeu de um anjo: “Vi na sua mão uma comprida lança de ouro, em cuja ponta de ferro havia um pequeno fogo. Ele parecia enfiá-la de vez em quando no meu coração, até perfurar minhas entranhas; e quando a puxava para fora arrastava tudo consigo, e me deixava em chamas, com um grande amor por Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer; e no entanto era tão extraordinária a doçura dessa dor excessiva que eu não queria que ela parasse”.

Em 1652 o escultor Bernini traduziu esse episódio num famoso grupo de estátuas, em Roma, onde a imagem do rosto da santa, jogado para trás, olhos cerrados, boca entreaberta, é a pura imagem do gozo físico. (Ver aqui: http://bit.ly/a6WfOp). Bernini produziu outra estátua em 1674, da beata Ludovica Albertoni, em que o momento da morte e o momento do êxtase igualmente se confundem (ver: http://bit.ly/YeVUQ0). Para nós, são imagens que evocam de imediato o gozo feminino, o transporte de prazer que já foi chamado “a pequena morte”. A mistura de prazer carnal e transcendência espiritual é um dos aspectos mais curiosos de certas religiões, onde o êxtase pela fé é sem dúvida uma sublimação para o sexo (onde ele é vetado) ou uma focalização de suas energias (onde o sexo é parte de um ritual).

Santa Teresa afirmou num poema: “Deus não tem outro corpo senão o teu / nem mãos, nem pés sobre a terra senão os teus; / são teus os olhos com que a compaixão de Deus contempla o mundo”. Poderíamos teorizar que o orgasmo é uma das raras ocasiões em que o ser humano se torna completo, em que corpo e alma se tornam uma coisa só, e Deus (aceitando a premissa de que haja um Deus) habita alguém por inteiro.



sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

3116) Antídoto contra o tédio (22.2.2013)




Os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, criadores do Concretismo paulistano com Décio Pignatari, costumavam mencionar em seus livros o mistério que cercava uma palavra do antigo idioma provençal. Era a palavra “noigandres”, que nenhum linguista conseguia entender o que era. 

Virou um pequeno enigma, tão fascinante que foi a palavra escolhida para dar nome à revista literária que os concretistas começaram a publicar em São Paulo em 1952. (E eu a citei ao chamar de “Campinoigandres” a cidade imaginária onde ocorrem alguns dos meus contos e meu romance A Máquina Voadora).

Quem quiser saber a história detalhada, leia aqui o ótimo artigo de Antonio Risério (http://bit.ly/YwwnlS); basta dizer que o provençalista Emil Lévy pesquisou a palavra e concluiu que seria uma forma abreviada de “d’enoi gandres”, onde “enoi” é uma forma aparentada ao termo francês “ennui”, tédio; e “gandres” viria de “gandir”, proteger. 

A expressão significaria, portanto, algo que protege contra o tédio. Um antídoto contra o tédio – para ser fiel ao amor concretista pelas assonâncias. E, por uma casualidade serendipícia, é uma boa descrição para a injeção de novidade e estranheza que o Concretismo aplicou em nossa poesia, em nossa crítica literária.

Isto sempre me trouxe à mente a famosa frase de Maiakóvski, que dizia: “É melhor morrer de vodka do que de tédio”. Melhor naufragar na tormenta do que apodrecer na calmaria. Maiakóvski, o futurista “de estatura quilométrica”, com sua camisa amarelo-berrante, dizendo: “A anatomia ficou maluca comigo: sou coração dos pés à cabeça”. 


E me lembra também o conto de Ray Bradbury, no livro homônimo, A Medicine for Melancholy (1959). É a história de uma linda mocinha londrina do século 18, que está definhando de fraqueza e nostalgia. A família coloca sua cama na calçada, em frente à casa, para pedir opiniões aos transeuntes. Um jovem lixeiro aconselha que ela passe a noite ali fora, porque a melancolia que ela sente só pode ser curada por um remédio: a lua. Seguem seu conselho, e durante a noite quem aparece não é a lua, é o próprio lixeiro, agora limpo e cheiroso, que se enfia entre os lençóis da moça e a cura da melancolia com o mais antigo dos remédios.

E não acho que exagero quando vejo na letra de Cazuza em “Todo Amor que Houver Nessa Vida” um pouco disso tudo: “Transformar o tédio em melodia... algum veneno antimonotonia... algum remédio que me dê alegria...”. 

Tudo que as pessoas buscam na vodka, na droga, no amor, na música, na poesia. A novidade, a estranheza, a intensidade, o furacão, a tempestade, a alucinação dos sentidos, a eletricidade na medula, o antídoto contra o tédio: noigandres.





quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

3115) O lutador de Bandeira (21.2.2013)




("Êxtase de Santa Teresa", de Bernini)


Manuel Bandeira refere-se também, a respeito dos seus poemas feitos pelo inconsciente, a “Lutador”, soneto que aparece no livro Belo Belo (1948). Diz ele que a idéia surgiu de uma conversa com sua prima Maria do Carmo do Cristo Rei, monja carmelita, que lhe contou uma viagem feita por umas amigas dela a Ávila, onde viram o coração transverberado da santa local. O poeta impressionou-se com essa palavra, “transverberado” (=trespassado, atravessado) e passou o dia com esta palavra na cabeça, mas sem tentar compor nenhum poema. Diz ele: 

“No dia seguinte de manhã acordo com o soneto pronto na cabeça, com título e tudo. ‘Believe it or not’. Não sei até hoje quem seja o lutador. O primeiro quarteto não permite supor que se trate de Cristo: aplica-se, sim, a Beethoven, cuja biografia escrita por Romain Rolland li e reli comovidíssimo aos vinte e tantos anos. Tanto este soneto como a “Palinódia” [em Libertinagem, 1930] são coisas que tenho que interpretar como obra alheia”.

Eis o soneto: 

Buscou no amor o bálsamo da vida, 
não encontrou senão veneno e morte. 
Levantou no deserto a roca-forte 
do egoísmo, e a roca em mar foi submergida! 

Depois de muita pena e muita lida, 
de espantos caçar de toda sorte, 
venceu o monstro de desmedido porte 
a ululante Quimera espavorida! 

Quando morreu, línguas de sangue ardente, 
aleluias de fogo acometiam, 
tomavam todo o céu de lado a lado, 

e longamente, indefinidamente, 
como um coro de ventos sacudiam 
seu grande coração transverberado!.

Impressionante o cara compor dormindo um soneto que eu não faria nem duplamente acordado. Os versos “levantou no deserto a roca-forte do egoísmo, e a roca em mar foi submergida” são titânicos, uma mistura de Gustave Doré com El Greco. E essa “ululante Quimera espavorida” não é menor que Goya ou (mais obviamente) Géricault. (Relendo o trecho percebo que só me ocorreram comparações com pintores, não com poetas; a forte visualidade das imagens, domesticada por decassílabos quase perfeitos, mostra o duplo nível de criação e elaboração que resultou em “Lutador”).

O coração “transverberado” de Sta. Teresa foi retratado na famosíssima escultura de Bernini em que um anjo atravessa seu coração com uma seta; é a escultura que foi chamada de “o santo orgasmo”, pela intensa expressão de êxtase da santa. Na memória inconsciente de Bandeira, fundiram-se talvez a prima, Beethoven, a escultura de Bernini, a sexualidade sublimada, as imagens extremadas e delirantes de paixões reprimidas. Libido sublimada em imagens, imagens sublimadas em versos. Quem é poeta mesmo, é poeta 24 horas por dia, queira ou não queira.


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

3114) "Persona" (20.2.2013)












Revi este clássico de Ingmar Bergman, um dos mais meticulosamente belos que ele executou. É a história de uma atriz que teve um esgotamento nervoso e ficou muda (Liv Ullmann) e a enfermeira encarregada de cuidar dela (Bibi Andersson). O filme todo é um “pas-de-deux” entre elas. Logo no início do tratamento, vão para uma casa na praia, e lá ocorre o filme quase todo. A expressão “uma casa na praia” é uma das mais vulneráveis à geografia. A praia sueca de Bergman é pouco mais que um sertão: uma região em preto-e-branco coberta de rochedos, pedregulhos, lajedos partidos cheios de arestas e quinas agudas, um mar cinzento que fustiga sem cessar essa superfície árida, estéril. Uma praia que reaparece em outros filmes do diretor, como O sétimo selo, A hora do lobo, etc. Uma praia inóspita, cruel, sofredora. Depois não digam que eu não avisei.


Elizabeth (a atriz) não diz uma palavra; Alma (a enfermeira), fala compulsivamente, sem parar. E então, na convivência solitária das duas, algo começa a acontecer. Ao invés da enfermeira tratar da doente, é a doente que parece tratar da enfermeira, impondo sobre ela aquele terrível e pressionante silêncio do psicanalista sobre o falante indefeso que dá com a língua nos dentes no divã. Alma fala o tempo inteiro, sobre seus planos, seus projetos de vida, seu passado. Há uma cena famosa (que Godard confessa ter imitado em Week-end à francesa) em que ela conta ao longo de infinitos minutos uma experiência sexual que teve na praia, com uma amiga e dois rapazes desconhecidos. Alma se abre, se derrama sobre a sua suposta paciente, e esta, pacientemente, mantém seu silêncio. Como se as duas fossem vasos comunicantes e Elizabeth, num plano mais abaixo, sugasse para si tudo que há na outra.

E elas começam a se fundir, como duas partículas subatômicas que, submetidas a uma experiência, permanecem ligadas, mesmo distantes. Como se uma soubesse o que se passa na mente da outra. Há uma cena com dois monólogos sucessivos em que Alma, parecendo ler a memória de Elizabeth, descreve de maneira impiedosa os comos e os porquês de sua repulsa emocional pelo único filho. Ou na cena (de sonho?) em que o marido de Elizabeth confunde Alma com a esposa e Elizabeth, ao lado, aparentemente sem ser vista por ele, força a enfermeira a abraçar-se com ele, dialogar com ele em seu nome.

Bergman fazia um cinema de prospecção de camadas profundas da mente e da memória, que não se pode alcançar sem altos custos e sem altos sacrifícios. Tirando este aspecto, o filme é de uma linearidade e uma limpidez espantosas, graças às atrizes, à fotografia de Sven Nykvist e à música de Lars Johan Werle.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

3113) "Literatura Nazista" (19.2.2013)





Não sei se foi Jorge Luís Borges quem inventou a biografia literária como gênero da ficção (Pierre Menard, Herbert Quain, etc.), mas o chileno Roberto Bolaño produziu um dos mais saborosos e intrigantes títulos desse gênero: A Literatura Nazista nas Américas (1996). Não sei se já saiu no Brasil. 

[ Saiu agora, pela Companhia das Letras, em tradução de Rosa Freire d'Aguiar. ]

É uma coletânea de biografias curtas de 30 escritores de variadas tendências direitistas. Os capítulos variam entre duas e trinta páginas. A imaginação de Bolaño é notável, mas mais notável ainda é seu olho jornalístico: os personagens que ele descreve são caricaturas ou esboços descritivos de escritores em que a gente esbarra em qualquer esquina.

Há por exemplo os irmãos Ítalo e Argentino Schiaffino, chefes da torcida organizada do Boca Juniors, envolvidos com gangsters, celebrantes da violência física e da briga de rua, e colocando a culpa de todos os problemas do país na burguesia judaica e nos intelectuais comunistas. 

Há o plagiador inveterado Max Mirebalais, haitiano, cuja obra é uma gigantesca antologia de autores obscuros cujos poemas ele copia e assina. 

Há a socialite argentina Luz Mendiluce Thompson, cuja maior honra foi ter posado nos braços de Hitler quando era bebê e sua mãe visitou a Alemanha. 

Há o norte-americano Zach Sodenstern, autor de romances de ficção científica sobre o super-herói Gunther O’Donnell, que é acompanhado por seu cão, “um pastor alemão mutante, com poderes telepáticos e tendências nazistas”. 

Há o poeta Rory Long, que cultiva a poesia falada e funda a Igreja Carismática dos Cristãos Californianos. 

Há a poetisa mexicana Irma Carrasco, que afirmava estar “apaixonada por Deus, pela Vida, e pela Nova Aurora Mexicana, à qual se referia indiscriminadamente como ‘ressurreição’, ‘despertar’, ‘sonho’, ‘apaixonar-se’, ‘perdão’ e ‘casamento’”.

Deixo para depois o comentário sobre os dois brasileiros que entram no catálogo imaginário de Bolaño. Os autores que ele inventa (ou que recompõe das memórias de suas andanças por América Latina e Europa) não são todos propriamente nazistas. São aquela mistura informe e desorientada (que aliás não é privilégio da Direita) de vaidade, tacanhez espiritual, leituras desordenadas e cheias de lacunas, alpinismo social, idealismo egoísta, fervor missionário. 

Seus “nazistas” na verdade não passam desses indivíduos que ouvem dez galos tecendo a manhã em diferentes pontos cardeais e querem descobrir todos ao mesmo tempo. 

O único personagem realmente ameaçador é o último, Ramírez Hoffmann, que Bolaño retomou brilhantemente, com o nome de Carlos Wieder, no romance Estrela distante, já comentado aqui nesta coluna (http://bit.ly/SgYxoE). 









sábado, 16 de fevereiro de 2013

3112) O mais e o menos (17.2.2013)





(Saul Steinberg)



O que é o “mais” em arte, literatura, design, etc.? 

Em geral é um “mais” quantitativo: mais formas, mais cores, mais palavras, mais páginas. Um número maior de elementos, enfim. Pode ser também um “mais” relativo à dinâmica, no sentido musical do termo: trechos executados com maior intensidade. 

Nada disso é uma qualidade em si nem um defeito em si. E isso não vale só para a música, vale em toda expressão. É a alternância entre o forte e o suave, uma maior e uma menor concentração. Um tipo de impressão estética que a música orquestral do Ocidente refinou a um grau incomparável.

O “menos” é necessário para efeito de contraste (ou seja, para que se estabeleça essa dinâmica) mas ele pode ser um valor em si, tanto quanto o “mais”, quando há fases históricas em que um deles surge para combater os excessos do outro. 

O Modernismo no século 20 foi, em muitos campos artísticos, uma tentativa de “limpar as estrebarias” atulhadas de resíduos do Barroco, do Romantismo e de outros movimentos que, por diferentes caminhos, pregavam e praticavam a exuberância, a torrencialidade, a multiplicação e acúmulo de sensações, de efeitos. 

Quando a geração de Picasso aderiu à arte africana não foi por um simples exotismo étnico, foi em busca de uma expressão mais sintética, mais direta-ao-ponto, menos dependente de firulas, babados, aquele realismo detalhista chegando à beira do fractal.

Mario Quintana, um dos nossos sacerdotes do “menos”, refere-se no poema “Retrato” (em Apontamentos de História Sobrenatural) a um velhinho “suave como os couros gastos, as madeiras polidas pelo uso, como os seixos rolados – suave e rijo!”. 

É a essência do minimalismo. Não é a mera economia de efeitos, mas uma economia voltada para a concentração, compactação, solidez.

E a verdade é que ninguém trabalha numa única escala. Todo mundo flutua, ao longo do processo criativo, entre momentos-do-mais e momentos-do-menos, como uma orquestra tocando o “Bolero de Ravel” ou uma banda tocando “Stairway to Heaven”. 

Quando escrevemos de verdade, mergulhados no texto e só no texto, sem perceber o que acontece à nossa volta (jogo da Copa, incêndio no prédio, virose no bebê), sabemos quando o texto nos pede três páginas de catadupa verbal em parágrafo único ou um simples bloco de três linhas com cada palavra escolhida após longa deliberação (o que às vezes nos pede mais tempo do que a outra opção). 

Escrever prosa de ficção exige talentos de maestro – o conhecimento dos naipes disponíveis, o saber intuitivamente onde empregar o quê, e principalmente a dinâmica entre o poderoso e o delicado, o transbordante e o contido, a holoilustração em 3D e a foto 3x4.










3111) Ser escritor (16.2.2013)






Volto a lembrar a frase famosa de Ferreira Gullar: “A pior coisa de ser poeta é convencer sua mulher de que, quando você está sem camisa, debruçado na janela, fumando um cigarro e olhando lá pra fora, você está trabalhando”. O lado positivo é que qualquer vagabundo pode adotar essa atitude e defender-se dizendo: “Não me atrapalhe, estou escrevendo um poema”. Corolário: na dúvida, julga-se um poeta não pelo seu comportamento pessoal, mas pelos textos que produz. Ponto final.

Para romancistas ou redatores de obras de maior espessura o debruçar-se à janela não adianta muito. É possível conceber um poema apenas pensando, mas um romance de 300 páginas eu duvido. Em todo caso, não há muita diferença (do ponto de vista da família de um cidadão) entre um marido-e-pai que passa o dia fumando na janela e um marido-e-pai que passa o dia trancado num gabinete, digitando sem parar. São dois indivíduos ausentes, e um processo por abandono do lar pende como espada de Dâmocles sobre suas cabeças, eternamente, porque não basta a presença física. Família que interagir, crianças querem brincar, filhos maiores querem um dedo de prosa, a esposa quer aconchegos e afagos. E o sujeito se obstina em trancar a porta e passar o ferrolho por dentro, dizendo: “Não atrapalhem, estou criando uma obra-prima”. Muita pretensão.

Conversei uma vez num lançamento com a esposa do autor, que ao meu ver elogiar profusamente a obra do marido me agradeceu mais profusamente ainda. Era uma senhora com pés na terra, pão pão, queijo queijo, e me disse: “Eu não entendo nada do que ele escreve, e sou muito sincera, só percebi que ele era importante quando vi o que vocês jornalistas escreviam sobre os livros dele”. É aquela situação meio melancólica da mulher surda que casa com um pianista de concerto. Por mais que ele conquiste prêmios e viaje para tocar com a Sinfônica de Moscou, ela vai sempre ficar roendo um grão de dúvida. “Por que será que o valorizam tanto?...”

O escritor alcança seus maiores triunfos na solidão um escritório. Ele finaliza, de madrugada, o melhor conto que escreveu nos últimos dez anos, e não tem a quem mostrar. A casa está silenciosa. A família dorme; mesmo que seja acordada para participar dirá “Hum-hum, maravilha, boa noite”, e virará pro outro lado. Resta ao escritor ir à geladeira, pegar uma cerveja, debruçar-se na janela e comemorar a façanha ouvindo estrelas. Menos mal, não é mesmo? Existem vocações piores. A certeza do dever cumprido e da “Última Ceia” com tinta ainda fresca deve bastar para reconfortá-lo; e se tem uma coisa no mundo que nunca vai faltar é cerveja na geladeira e estrela no céu.



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

3110) O vírus de McAfee (15.2.2013)



(John McAfee, em foto de Brian Finke)

Desde o ano passado leio notícias sobre as tribulações de John McAfee. Para quem não está ligando o nome à pessoa, ele é o criador do antivírus McAfee, que a maioria de nós já teve ou tem em seu computador. 

De tanto ver seu nome no noticiário (envolvido em crimes, drogas, tiroteios, perseguições, etc.) foi com curiosidade um ponto acima do normal que fui ler a matéria sobre ele na revista Wired de dezembro (http://bit.ly/WBS2dm).

McAfee é o que em Campina a gente chama “um pertubado” (atenção, revisão, é com um R a menos). 

Um “pertubado” é um sujeito que não consegue parar quieto num canto, que parece ter um pequenino alien roendo suas entranhas. Um cara que faz tudo certo e de repente bota tudo a perder com uma gigantesca mancada, que se mete em complicações todos os dias, que faz besteira, que às vezes é agressivo, violento ou criminoso; que não encontra paz em si mesmo nem deixa em paz que está à sua volta. E alguns pertubados são inteligentes.

McAfee era um programador que inventou um antivírus, ficou milionário, entupiu-se de drogas de todo tipo, pirou, teve surtos paranóicos que continuam a atormentá-lo. 

Com uma fortuna de 100 milhões de dólares, refugiou-se em Belize, na América Central, onde foi há pouco acusado de estar fabricando metanfetamina e de matar a tiros um vizinho que envenenou seus cachorros. 

A matéria da Wired (assinada por Joshua Davis) o mostra cercado de guarda-costas, praticando roleta russa, alimentando-se de enlatados e refrigerantes, namorando meninas adolescentes (ele diz: “Quanto mais feia a mulher, melhor o sexo com ela”). Seus delírios mirabolantes (ele é do tipo que resolve qualquer problema metendo a mão no bolso e gastando) e a crise de 2008 consumiram quase todo seu dinheiro.

McAfee é o tipo “rico excêntrico” gerado a partir do mundo internético. São diferentes dos burgueses de limusine, dos yuppies de Wall Street, dos burocratas ricos do mero capitalismo financeiro, porque são indivíduos que criaram algo concreto e difícil. Têm inteligência excepcional, e gostam de viver no fio da navalha. Têm algo de nerd, algo de pirata, algo de rei maluco. 

São os equivalentes, em nossa era, a Kurtz, a Rimbaud, a Aguirre e a Fitzcarraldo. Numa entrevista recente (http://bit.ly/XtiGWq), McAfee afirmou: 

“Não adianta estocar dinheiro. Dinheiro não é algo que você possui. O dinheiro quer fluir através de você, ele é o fluxo livre de energia, ou de capital. É como o sexo. Ele precisa fluir.” 

A sabedoria desses caras, que parecem personagens de Philip K. Dick, é “só de experiências feita”, e eu presto mais atenção nas falas deles do que nas de qualquer PhD formado em Yale ou em Oxford.





quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

3109) Bandeira inconsciente (14.2.2013)





(Manuel Bandeira)



No seu livro de memórias literárias Itinerário de Pasárgada (Global, 2012) Manuel Bandeira comenta os poemas que fez dormindo. Pode parecer estranho a quem não é poeta, mas se um sujeito que anda de bicicleta pode sonhar que está bicicletando, o que há de estranho em um poeta sonhar que está poetando? Ele cita, p. ex., o poema “Palinódia” (no livro Libertinagem, 1930). Diz que sonhou com uns versos, e ao acordar conseguiu lembrar estes: 

Não és prima só 
senão prima de prima 
prima-dona de prima 
- Primeva. 

E um pouco dos versos iniciais: 

Quem te chamara prima 
arruinaria em mim o conceito 
de teogonias velhíssimas 
todavia viscerais.

E diz: “Para completar o poema, tive que inventar a segunda estrofe, que não saiu hermética, como a primeira e a terceira. Achei que seria melhor isso do que fingir obscuridade, coisa que jamais pratiquei. É verdade que tentei o ditado do subconsciente, segundo a receita ‘surréaliste’ (fracassei, como sempre)”. 

É bom ouvir isso de Bandeira, cuja poesia lindamente espontânea esconde um trabalho rítmico e sonoro tão minucioso quanto o de João Cabral, embora dê menos na vista, porque é mais integrado (eu diria “mimetizado”), aos ritmos e sons da fala cotidiana, incluindo-se aí a fala carregada de emoção.

A segunda estrofe, inventada lucidamente pelo poeta, diz: 

Naquele inverno 
tomaste banhos de mar 
visitaste as igrejas 
(como se temesses morrer sem conhecê-las todas) 
tiraste retratos 
enormes 
telefonavas telefonavas... 
hoje em verdade te digo 
que não és prima só / ... etc.”.  

Fico imaginando se esse poema não teria a ver (tal como o “Lutador”, do livro Belo Belo) com sua prima Maria do Castro do Cristo Rei, que era monja carmelita. Trata-se, afinal, de um poema sobre uma prima, com referências religiosas (“teogonias”, “igrejas”).

O poema, mesmo sem ser uma obra-prima (o trocadilho é proposital) parece ter certa importância para Bandeira, não só porque o incluiu em livro, mas porque se deu o trabalho de construir uma ponte entre os dois trechos sonhados. 

A leitura que posso fazer dele agora, obviamente depois de municiado com informações do próprio autor, é que o poeta se dirige a uma prima observando que durante um certo inverno os dois pareceram mais próximos, porque a prima não apenas teve uma vida social mais intensa (indo à praia, visitando igrejas, tirando fotos) como porque ela também lhe telefonava o tempo todo. Há uma relação indiscutível de afeto entre o poeta e a inspiradora do poema, que o faz remontar à própria origem dos deuses (teogonia) e do homem, porque ela é a “prima Eva”.









quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

3108) "Cosmópolis" (13.2.2013)





Não li o romance em que se baseou este filme de David Cronenberg. O filme tem tantos diálogos interessantes e frases tipo guilhotina (aquela que faz vapt! – e joga você no espaço) que deu vontade de ler o livro original. Nunca cheguei ao fim dos dois livros de DeLillo que tenho, e o curioso é que o acho um excelente escritor. Talvez seja mesmo, e eu é que sou um leitor relapso. Talvez ele seja um autor para ser lido num ambiente de silêncio e concentração, e não na fila do Banco ou durante uma circular do 184.

Cronenberg é um dos meus diretores preferidos, desde os pesadelos mórbidos do começo da carreira até os seus recentes thrillers, rudes e impiedosos (Marcas da Violência, Senhores do Crime). Cosmópolis me lembrou em certos momentos o Crash – Estranhos Prazeres (1996), baseado em J. G. Ballard, onde ele mostrava um grupo de pessoas com obsessão sexual por automóveis e acidentes. Cosmópolis sugere pelo título uma compressão de espaço: o universo comprimido numa cidade, a cidade comprimida no interior de um carro. Eric Packer (Robert Pattinson) é um bilionário de 28 anos, o que significa dizer que ele só tem uma idéia muito vaga de por quê se tornou bilionário. O hipercapitalismo gera tanta riqueza virtual que ela tem que ir para as mãos de alguém; é como a Mega-Sena. Alguém acaba ganhando. Cada um tem seus truques na arte de fabricar fortunas na especulação financeira; os que ganham não precisam ser os mais inteligentes ou mais capazes. Geralmente são (como Packer) meros manipuladores de pessoas talentosas.

Packer se arrasta por Manhattan numa limusine e vai se encontrando com os coadjuvantes de seu delírio: a esposa, os assessores e conselheiros, os seguranças, o médico... A cidade está um caos, com passeatas, demonstrações, enterros, atentados terroristas. É impressionante a quantidade de pontos em comum entre Cosmópolis e um filme que em princípio não tem nada a ver com ele, Holy Motors de Leos Carax (comentado aqui em 14 de dezembro), onde, igualmente, um cara passa o dia inteiro dentro de uma limusine (desta vez em Paris) relacionando-se com gente estranha. Curiosamente, os dois filmes estrearam no Festival de Cannes de 2012; o de Cronenberg foi concluído antes do início das filmagens do de Carax, e além do mais se baseia num romance bem conhecido. Não deve ser imitação ou influência, talvez seja um sintoma coletivo. Estamos no mundo das limusines, que são um equivalente móvel dos condomínios cobertos por vigilância high-tech. Do “realismo histérico” de Cronenberg ao surrealismo de Carax as limusines parecem estar virando as novas carruagens-abóboras dos contos de fadas urbanos.



terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

3107) O nome da fera (12.2.2013)





Dias atrás mais uma tempestade de inverno atingiu os Estados Unidos. A imprensa a chamou de Nemo. Um nome aparentemente adequado, por ter ressonâncias marítimas: o capitão Nemo de 20 Mil Léguas Submarinas, o peixinho de Procurando Nemo.  Muita gente, porém, reclamou desse nome, porque ao que parece não é costume dar nome a tempestades de inverno. É uma dessas tecnicalidades divertidas do mundo da burocracia científica.

Segundo o saite Terra, “apesar de a tempestade estar sendo chamada de Nemo por vários veículos da mídia americana, o nome não é oficial, mas sim uma criação da emissora Weather Channel, o que gerou uma polêmica nas mídias sociais e entre alguns jornalistas. ‘Nós não estamos usando esse nome arbitrário para a tempestade’, disse Jason Samenow, do Washington Post; ‘é sem sentido’. Oficialmente, o Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos dá nome a apenas tempestades tropicais e a furacões. Tempestades de inverno não costumam receber alcunhas, mas o Weather Channel passou a adotar identificações para ajudar a alertar os moradores de áreas atingidas e torná-las mais fácil de serem seguidas, especialmente nas redes sociais”.

Os meteorólogos devem ter lá suas razões para batizar umas coisas e não batizar outras. Na verdade, o sistema de nomeação dos furacões tem uma lógica: nomes próprios por ordem alfabética, para que seja mais fácil situar um furacão em relação a outro. (Escrevi a respeito aqui: http://bit.ly/Y12qK0). E damos nomes às coisas pelos mesmos motivos por que damos nomes a nós mesmos. Imaginem só o problema se nosso amigo José não se chamasse José; teríamos que ter dezenas de designações diferentes para ele: o filho de Seu Zuca, o filho de Dona Maria, o irmão de Joana, o menino da casa da esquina, o menino que tem um cachorro marrom... Um nome enfeixa isto tudo numa fórmula curta e sólida.

Pelo mesmo motivo inventamos nomes como amor, liberdade, democracia, ética, etc. Não correspondem a criaturas reais. Se nos pedissem uma definição para qualquer um desses conceitos teríamos dificuldade em fornecê-la, e mesmo que o conseguíssemos dificilmente seriam encontradas duas definições iguais. O nome serve por um lado para tornar nítida uma coisa difusa e por outro lado para sugerir que várias coisas são uma só por serem chamadas pelo mesmo nome. Sempre que dizemos “o Brasil” estamos nos referindo, em princípio, a uma entidade geograficamente, historicamente e politicamente concreta; e também a um fenômeno tão heterogêneo, tumultuado, contraditório, instável e mutante quanto uma tempestade tropical. Ou de inverno.




segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

3106) Django e o personagem (10.2.2013)





No filme de Quentin Tarantino, Django Livre, os dois pistoleiros, Schulz e Django, vão até uma fazenda fingindo interesse num assunto qualquer, mas com a intenção de resgatar uma escrava. Django tem que se fingir de negociante de negros que lutam para agradar os brancos. No filme, os fazendeiros brancos cultivam uma luta que é uma espécie de MMA entre dois brutamontes, no tapete da sala, para uma platéia de meia dúzia de amigos ricos, que fazem apostas. Os negros lutam “na mão” até que um consegue deixar o outro indefeso; então, o patrão oferece um martelo para que o perdedor seja “finalizado”.

O poder nos cega, o poder nos diz que somos invencíveis, que todos os nossos desejos serão satisfeitos, todos os nossos prazeres serão aceitos e legitimados, que mesmo as nossas fantasias mais cruéis merecem ser trazidas ao mundo real.  Dê a um ser humano poder absoluto sobre outro ser humano, e verá o quanto um ser humano vale pouco aos olhos de outro.

Schulz adverte a Django: “Não saia do personagem”. Atores sabem o que é isto. Leonardo DiCaprio cortou a mão num caco de vidro, na cena do jantar, mas ficou no personagem, e usou a mão sangrando como parte da cena. Incorporou o acidente à criação. Naquele mundo, continuar representando, sem deixar a peteca cair, é garantia de continuar vivendo.

Porque naquele ambiente todos representam. Schulz se disfarça de dentista. Django, quando libertado, se fantasia de branco (ou de mestre-sala, não sei). Criminosos se fantasiam de xerife. Stephen (Samuel L. Jackson, ótimo) é uma raposa calculista que se fantasia de puxa-saco ingênuo (o verdadeiro administrador da fazenda é ele). O fazendeiro (Leonardo DiCaprio, excelente) tem um personagem exuberante e imutável até o momento em que percebe estar sendo enganado, quando então reage como qualquer sinhôzinho quando é vítima de um insulto, ou pior, quando vê que estava sendo feito de otário.

Sair do personagem (perder a calma, o sangue frio, a paciência) é o que perde esses personagens. Quem sai do personagem perde o controle que tinha sobre a própria história. Negros são obrigados a “entrar num personagem” para sobreviver: a imitar os brancos, agradar os brancos, trair outros negros em benefício dos brancos. Schulz, que parece capaz de se sair de qualquer enrascada mediante sorrisos, gestos largos e exuberância vocabular, sai desse personagem no momento em que a raiva e a revolta moral são mais fortes do que o instinto de sobrevivência. Tarantino dirige cada cena como um arqueiro que retesa um arco, e quanto maior a energia retesada mais sangrento e trovejante é o desfecho, no momento em que ele desfere a flecha.



sábado, 9 de fevereiro de 2013

3105) O poema inconsciente (9.2.2013)





Falamos em mente consciente e mente inconsciente como se fossem duas coisas distintas, mas talvez elas sejam apenas como um jardim que a certa hora da tarde é batido parcialmente pelo sol. Uma parte fica iluminada e visível, e a outra mergulhada na sombra. Não a vemos direito porque o brilho da primeira deixa nossos olhos acostumados, e tendemos a pensar que o resto não está ali. 

Mas não são dois espaços diferentes.  O jardim é um só.


Manuel Bandeira conta, no seu Itinerário de Pasárgada, sobre alguns versos que compôs num estado alterado de consciência. O mais conhecido é o poema “Oração no Saco de Mangaratiba”, poeminha curto que era para ser muito maior. 

Diz ele que vinha voltando de barco de Mangaratiba, à noite, cansadíssimo, quando 

“...numa espécie de subdelírio de imensa fadiga, todo um poema, o mais longo que já se formou na minha cabeça, começou a fluir dentro de mim. O meu esgotamento era tal, que não tive ânimo para tomar o menor apontamento. Pensei poder recompor os versos em casa. Mal cheguei, caí no sono... Quando acordei, só me restavam na memória os seis versos da oração, única estrofe regular do poema, que era no mais em verso livre. Nunca me consolei desse desastre”.

O primeiro aspecto interessante é o estado alterado de consciência produzido pelo cansaço; algo que muitos artistas e escritores, inadvertidamente, procuram, quando “viram a noite” escrevendo, tomando drogas, sem dormir, etc. Por paradoxal que pareça, certos tipos de cansaço físico parecem deixar a mente mais livre para pensar e para criar em paz. 

O segundo aspecto, notado pelo próprio Bandeira, é o fato de que os trechos em verso livre foram esquecidos, mas ele conseguiu lembrar o único trecho “regular” (=com métrica e rima). O fragmento final, que foi salvo, diz: 

“Nossa Senhora me dê paciência 
para estes mares para esta vida! 
Me dê paciência pra que eu não caia 
pra que eu não pare nesta existência 
tão mal cumprida tão mais comprida 
do que a restinga de Marambaia!”.

Todos sabem que é mais fácil decorar algo rimado e metrificado do que um texto solto. A métrica e a rima se gravam em outro departamento do cérebro, talvez, um setor responsável pela memorização de estruturas regulares, que, por assim se dizer, memorizam-se a si mesmas, impõem uma regularidade. Uma rima chama a próxima, a cadência regular do metro define o tamanho e a acentuação dos trechos que vêm a seguir. 

O que dá mais pena é sabermos que todo o texto esquecido por Bandeira poderia ter sido recuperado através de algum tipo de exercício mental, quem sabe até através de hipnotismo. Na mente nada se perde, tudo vai para o sótão.







sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

3104) Dumas e Django (8.2.2013)





(Alexandre Dumas)

Muitos que assistiram Django Livre, de Quentin Tarantino, talvez tenham saído do cinema estranhando um diálogo. Alexandre Dumas era negro? De certa forma, sim, e no contexto de ódio racial do filme, era importante que um alemão mostrasse a um norte-americano que não existem “raças inferiores”, como ele imaginava. (Nada de mais – os norte-americanos vivem dizendo isso aos alemães há 50 anos; no cinema então nem se fala.) Um fazendeiro sulista e alourado trata os negros como animais, é todo metido a admirador da França, embora não fale dez mirréis de francês; bota o nome de D’Artagnan num escravo, e não sabe que o autor dos Três Mosqueteiros era mulato, da cor da Brunhilde von Shaft em volta de quem decorre o terço final do filme?

O pai de Alexandre Dumas era um general caribenho, nascido em São Domingos, vizinho ao Haiti. Foi o primeiro general francês com essa origem étnica; ganhou cargos importantes mas entrou em decadência por perseguições, inclusive por parte de Napoleão. Era, pelos retratos, um desses caribenhos de rosto cheio, nariz abatatado, bigodes e cabelos negros e fartos, um tipo como Gabriel Garcia Márquez ou como o Sargento Garcia do “Zorro”. Um tipo que esperamos mais de um mexicano ou colombiano do que de um francês.  Alexandre, assim como o pai, tinha o rosto bochechudo, e ao que parece aquela pele morena que chamam “cor de oliva”, que aqui no Brasil passa despercebido, mas na França destaca mais do que um letra maiúscula.

A mãe de Dumas era francesa, filha de um estalajadeiro. O filho dela foi produto de um intercurso étnico não muito diferente, em linhas gerais, do que produziu Barack Obama, filho de um queniano negro ilustre com uma anônima estudante branca no Havai. Alexandre Dumas enfrentou dificuldades em sua carreira, mas se impôs pelo espantoso sucesso popular de seus romances-folhetim, e pelo fato de que sabia usar sua riqueza para viver bem e agradar aos outros. Dumas talvez fosse da cor de Machado de Assis. Fico pensando qual dos dois chamaria mais atenção pelo aspecto mestiço, se um no Rio ou o outro em Paris.

Tarantino põe um alemão usando um exemplo francês para ensinar a um norte-americano como tratar os africanos. Ótimo.  Mulatos claros como Dumas, Machado, Obama, tenderão a passar cada vez mais despercebidos, a serem mais “default” a cada década que passar em paz naquele país, ou no nosso. Django Livre é um filme de vinganças. O ódio racial gera pessoas que diante de um copo de café-com-leite chamam aquilo de só-café; e outras chamam de só-leite.  O filme mostra que algumas das relações mais honestas e solidárias podem ser entre pessoas de cores diferentes.




quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

3103) O troco do diabo (7.2.2013)






Era um mau costume que Dr. Domiciano tinha, esse costume de tudo no mundo ele botar o Diabo no meio.  Chega parecia que tudo que ele abria a boca e falava tinha que pedir a bênção ao Diabo, nem que fosse pra dizer que “ele”, o Tal, era o culpado de tudo que acontecia no mundo. “Porque do jeito que o mundo anda...” – era como finalizava, com desgosto, o doutor. O mundo parecia abandonado por Deus, daí a necessidade de uma virada feroz na manivela – pra ver se o motor arrefecido da fé cristã pegava no tranco, no trompaço, na sacudida.

Tá tudo como o Diabo gosta, invocava ele em qualquer lugar onde houvesse pessoas se divertindo, ou pelo menos fingindo obedientemente que se divertiam, como em certas matinais carnavalescas. Sai daqui, Diabo, era como ele saudava as filhas jovens que os outros sócios do Iate Clube lhe apresentavam, mesmo que se seguisse um brevíssimo segundo de hesitação e depois risadas em uníssono, e vozes meio desconcertadas comentando seu senso de humor.

E se algo se perdia, ele dizia: “É o troco do Diabo. O Diabo criou o mundo, uma produção hollywoodiana, faraônica, digna de um Joãosinho Trinta bancado por um Luís Quinze. O Diabo precisa de energia de volta. Por isso a gente desperdiça tanta coisa. Você pega uma bolacha, um pedacinho cai no chão. Uma casquinha de sorvete, já reparou? Espuma de chope, champanhe espoucado... É o troco do Diabo. A gente tem que pagar de volta, nem que seja uma pichilinga de nada. Por isso os negros, que vivem bebendo cachaça, inventaram essa besteira de: ‘derramar o do santo...’ O do santo nada. O santo deles é o diabo”.

O satanismo era o elemento químico fundamental do universo de Dr. Domiciano, que enxergava o Mal em tudo, jogava pôquer com os amigos brigando com o gelo do uísque e a cinza do charuto, parecia sempre a ponto de explodir miolos pelo ambiente, tinha pavio curto com gente da conversa comprida.

Um dia o Dr. Domiciano sentiu um incômodo e pediu para ir ao médico, que ao fazer o exame empalideceu, perguntou por que não o tinham procurado mais cedo, e passou o resto da tarde dando ordens nervosas a uma equipe. A cirurgia foi bem sucedida, e dias depois a esposa do doutor foi admitida na UTI. Ela pegou na mão dele, e ele pareceu reconhecê-la. Ela disse: Quem sou eu? E ele, mais com os lábios do que com a voz: “Minha Lady”. Ela chorou de alívio. Era ele, sim, mas um ele enfraquecido pelo terrível assalto a um corpo que viveu com força. O fígado estava um farrapo, o pulmão um problema, a pressão um alarme, a bexiga uma ruína. Morreu na manhã seguinte. Dizendo, adivinha o quê? “—O troco do diabo”.