(by Catrin Arno)
&  estou
inventando um espantalho eletrônico para afugentar spam  & 
uma caveira com os olhos intactos nas órbitas  &  ele apostou comigo
que seria capaz de musicar um livro de Clarice Lispector  & 
um cardume de peixinhos virtuais flutuando à toa pela sala quando a TV
entra em standby  &  às vezes a gente deseja até a III Guerra
Mundial contanto que não tenha de entregar aquele texto na segunda-feira  & 
no futuro o GPS dos taxistas será fornecido por uma franquia do Grand
Theft Auto  &  eu escrevo mais concentrado do que ciclista
descendo ladeira  &  toda tartaruga tem dentro do casco uma sala
com poltrona, luminária, lareira e uma estante cheia de clássicos
encadernados  &  um leque de papel de seda em chamas, e a madame
se abanando nem aí  &  serpentes com serpentes menores dentro de si
como bonecas russas  &  tinha uns olhos de quem sobreviveu a alguma
coisa séria  &  na parede, o retrato emoldurado de um time
com uma das silhuetas faltando 
&  bendita a certeza de que
um dia terei esquecido o que hoje me atormenta 
&  a diferença entre a
humanidade e os lemmings é que a humanidade explica por quê corre tanto  & 
não sei o que é pior, se o primeiro dia num emprego ou se o último  & 
dividir o tempo em dias, meses e anos é como dividir o mar com cordões
esticados  &  um câncer não é muito diferente de uma
pérola  &  escrever é desenterrar ruínas de si mesmo  & 
saudade dos meus trinta anos, quando eu via alguém sofrer e não sofria  & 
tô como cego em tiroteio, me desviando quando sinto o calor da bala  & 
ainda deve existir algum país onde se publica anualmente um catálogo com
o email e o celular de todos os seus habitantes  &  numa discussão de
casal a letra perde logo o sentido e tudo que importa é domesticar a melodia do
outro  &  nem todo poema contém poesia, assim como nem todo ruído é
música  &  valei-me Nossa Senhora dos Desafogados  &  minha coluna dói
tanto que não sei como não acorda todos os moradores do edifício  & 
aquele momento de prazer indescritível quando alguém termina de fazer
uma pergunta cuja resposta a gente sabe 
&  um telefone toca no
necrotério e ninguém levanta para atender 
&  o pé de coelho não deu
muita sorte ao coelho de onde saiu 
&  um temporal daqueles que
lavam a cidade e a deixam ainda mais suja 
&  tem sujeito capaz de
desenterrar uma pirâmide mas que não tem paciência para limpar a terra de um
caco de cerâmica  &  um rei vestindo paletó e gravata equivale a
um palhaço vestindo paletó e gravata 
&  e lá vou eu mundo afora
com meu apito de chamar peixes, minha pedra de guardar palavras, minha parede
de acordar o sol  &  
 


 
