terça-feira, 22 de dezembro de 2020

4655) Leituras de 2020 -- parte 2 (22.12.2020)



Alguns livros de autores brasileiros eu acabei lendo quase em primeira mão, por uma questão de vizinhança. Foi o caso do romance de minha irmã Clotilde Tavares, De repente a vida acaba (Natal: M3, 2019), com quem tive o primeiro contato quando ele não passava de cadernos cheios de anotações manuscritas e laudas impressas. É a história de duas mulheres muito parecidas e muito diferentes, uma toda professoral e séria, a outra toda farrista e aprontadora. No meio das duas, um manuscrito que pode ter sido e pode não ter sido escrito por uma ou pela outra; mas o que cativa mesmo é a maneira largada de escrever, a profusão de detalhes ora hilários ora arrepiantes.
 
Nesta postagem de abril, falo mais a miúdo sobre o livro:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4571-de-repente-vida-acaba-1842020.html



Da Paraíba me chegou às mãos Os Sonhos do Cão Bravio de João Matias, que pelo que me consta ainda não chegou da gráfica. O autor já havia publicado os contos de O Vermelho das Hóstias Brancas (Campina Grande: Ed. do Autor, 2009). Esta coletânea traz contos sobre uma Campina Grande tenuemente disfarçada por trás de um pseudônimo, narrando a evolução de um centro urbano desde um povoado até um centro comercial com grande feira e grande número de trabalhadores chineses.
 
Os contos têm uma crueza realista que não os impede de triscar de vez em quando na fronteira do fantástico ou pelo menos do insólito. Há uma violência latente nessas histórias onde os conflitos, longe de serem apaziguados, são exacerbados até o fim, meio que naquela filosofia “vamos aumentar isso até explodir tudo, e pronto”.


Essa perspectiva temporal tem uma fisionomia diferente em O Espelho dos Girassóis (Uauá: JM Gráfica e Editora, 2020) de Maviael Melo, onde o poeta e compositor lança mão de uma viagem mental da protagonista ao fundo de sua memória, onde episódios do passado vão sendo reconstituídos e revividos de forma diferente a cada vez que são acessados. Nas andanças de uma mulher (simbolicamente projetadas na imagem do espelho) por sua cidade, emergem os fatos do passado, aventuras de uma infância vivida entre o medo e a violência.



Muito parecido, e muito diferente, é o Amália atrás de Amália (São Paulo: Patuá, ) de Marco Aqueiva. Conversei com o autor em São Paulo (pela primeira vez) e trocamos nossos livros, três dias antes da morte dele, o que me impressionou e certamente tingiu a leitura. É uma novela intensa, de prosa eletrificada, ambientada num futuro próximo com traços cyberpunk mas sem o arcabouço realista da FC comum. Tem uns traços absurdistas que o aproximam (sem o viés do humor satírico) de outro livro da mesma coleção “Futuro Infinito”, o Back in the USSR de Fábio Fernandes, que li e comentei ano passado. É um mergulho vertiginoso de personagens entrevistos rapidamente, por situações recorrentes e ambientes de pesadelo. A prosa de Marco Aqueiva é segura, implacável, o que reforça a melancolia da perda de uma voz nova na nossa literatura fantástica.




Essa sombra da perda pairou também durante a leitura (no mais, muito agradável) de Geneton: Viver de Ver o Verde Mar (Recife: CEPE, 2019) de Ana Farache e Paulo Cunha, a biografia do jornalista Geneton Mores Neto (1956-2016). Livro de amigos falando de um amigo falecido é sempre uma cilada para a objetividade de qualquer leitor. Conheci esse trio quando eram todos jovens jornalistas (e superoitistas) no Recife, e cheguei a eles através do idem-idem Amin Stepple, que também “já nos deixou” um ano atrás. Acompanhei seus sonhos à distância, como quem vê um filme 16 projetado numa tela 35.
 
Como diz Rômulo Azevedo, que é da mesma tribo, chega uma época na vida em que a gente encontra os amigos com mais frequência nos corredores de hospital do que nos restaurantes. É bom ligar o sinal de alerta também quando a gente começa a ler biografias póstumas de caras que eram mais novos do que a gente.
 
Geneton teve, no meio de toda aquela geração talentosa (à qual associo também Marcos Cirano, Juliana Coentro, Beth Salgueiro, Ricardo Carvalho, Lula Falcão, tantos e tantos outros), a chance de adquirir um poder que jamais imaginaríamos naqueles anos distantes. Foi editor do Fantástico, da GloboNews, entrevistou celebridades internacionais e presidentes da República. Tinha o dom da pergunta direta, incômoda, feita de cara limpa, objetivamente, e que sempre extraía do entrevistado, fosse quem fosse, uma tentativa de responder no mesmo tom. (E muitas vezes, boto minha mão no fogo, era a primeira vez que alguém fazia aquela pergunta ao figurão diante de uma câmera ligada.)
 
O livro de Ana e Paulo reconstitui a vida pessoal de um amigo, os sonhos em comum, as dúvidas profissionais, a ralação incansável de quem sobe a ladeira da primeira metade da vida. Registra os baques, celebra as pequenas vitórias, as preciosas alegrias.



Também do Recife, mas em outra frequência modulada da memória, vem Meu Peito é Feito de Festa (Recife: Zoludesign, 2019) de Paulo Braz, um campinense adotivo que ao se radicar no Recife virou promotor de festas, o que de repente é muito mais interessante do que ser promotor de justiça. Dono de bar e restaurante, organizador de carnavais, reveillons e festas temáticas, Paulo Braz é um dos muitos que fizeram de Recife uma cidade cheia de música e alegria. Como nunca morei lá, coube ao Acaso me pegar nas pontas dos dedos e de vez em quando me depositar no meio de alguma das suas “Noites Olindenses” ou madrugadas do Calypso Club.
 
Pensando naqueles tempos de vinte ou trinta anos atrás, sinto a tentação pueril e pouco generosa de afirmar que nenhuma geração foi mais alegre do que a nossa. É mentira. Alegria é como água corrente, sempre encontrará caminho; ela sempre se infiltra, sempre brota e fertiliza. Mas talvez poucas gerações tenham confiado, tanto quanto a nossa, que o futuro viria espontaneamente. O resto é História.


 
(continua nos próximos dias)