sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

4664) Lupin, o ladrão de casaca (15.1.2021)


Arsène Lupin é o ladrão-de-casaca criado por Maurice Leblanc entre 1905-1935, um ladrão-detetive como Rocambole, de Ponson du Terrail, que provavelmente foi uma de suas fontes de inspiração. Ele é um “gentleman cambrioleur”, um gatuno elegante, o rei do disfarce, dos nomes inventados, dos falsos documentos, e graças a isso circula por Paris inteira sob uma infinidade de identidades falsas. Não mata: rouba apenas, e preferencialmente dos ricos e não-necessitados.

Na evolução de sua carreira de personagem, Lupin transformou-se (sem deixar de ser “o ladrão mais famoso da França”) uma espécie de detetive por conta própria. Ele soluciona enigmas históricos, recupera jóias ou relíquias da História francesa, decifra criptogramas, e de um modo geral consegue solver mistérios célebres que há séculos deixavam perplexos os historiadores, a polícia, as autoridades.





A série Lupin sendo exibida pelo Netflix moderniza de maneira hábil os romances originais. Em vez de pegar o mesmo personagem e ambientá-lo nos tempos de hoje, como fez com sucesso o Sherlock com Benedict Cumberbatch, os autores simplesmente pegaram um personagem de hoje que é fã dos romances de Leblanc e extrai deles técnicas, gimmicks, inspirações, truques etc.

A série é fiel ao espírito de Leblanc inclusive na leve implausibilidade de muitas situações, que o autor original tirava de letra com bom humor. Leblanc levava suas obras a sério, mas a fórmula da obra permitia e até mesmo exigia esses exageros lúdicos. Era uma fórmula a meio caminho entre o romance folhetim francês do século 19 e a pulp fiction das revistas modernas, cuja Era de Ouro estava começando.

Praticamente todas as aventuras de Arsène Lupin foram publicadas em forma de folhetim serializado nas revistas Je Sais Tout, Le Journal etc.  Lupin está tão ligado à Je Sais Tout quanto Sherlock Holmes está ligado a The Strand.



É uma literatura de rasgos teatrais, extraordinários, onde em muitos momentos a vibração da aventura e do perigo se sobrepõem à lógica, num equilíbrio delicado que nem todos os autores de ficção popular conseguem manter. A engenhosidade dos golpes, dos assaltos e das fugas só tem valor se ocorrer em situações onde o leitor experimente uma sensação real de perigo. Por outro lado, um excesso de realismo acaba se tornando um freio-de-mão-puxado; o autor precisa às vezes contar com certa cumplicidade pouco exigente do público, para que certas peripécias possam acontecer.

A primeira temporada da série criada por George Kay e François Uzan, com Omar Sy no papel de Lupin, equilibra-se muito bem entre as pressões opostas da exigências e do exagero. As referências diretas ou sutis aos livros de Leblanc são muitas, mas os criadores acertam em dar vida própria e perfil próprio aos seus personagens.



É o mesmo acerto, aliás, da franquia japonesa (mangás, filmes de animação) Lupin III, criada por Monkey Punch (Kazuhiko Kato), também excelentes. São as aventuras de um pretenso neto do Arsène Lupin francês – de tal modo que as antigas histórias servem de ponto de partida para peripécias num novo contexto, sem que nenhum dos dois planos de narrativa sirva de estorvo ao outro.

A Netflix tem este ótimo longa-metragem do Lupin japonês:



Os livros de Arsène Lupin foram uma leitura formadora entre meus 10 e 15 anos. Li todos, e tenho todos até hoje (não os mesmos exemplares, claro), nas edições da Vecchi, todos com “artísticas sobrecapas a cores do pintor Nils”. Foi esse Nils quem criou para mim a imagem do Lupin original: branco, bigode preto fino, monóculo, cartola. As capas são ótimas, embora tenham uma certa propensão a dar spoilers de detalhes fundamentais dos romances. 

Releio Lupin sempre que posso, para não perder de memória a agilidade narrativa e a coragem diante do implausível. Durante a quarentena, em 2020, reli Rolha de Cristal (1912) e Mansão Misteriosa (1928).


Anos depois, coube à Nova Fronteira, relançar a série completa, com novas traduções e novo projeto gráfico.

Lupin, da Netflix, restaura aspectos essenciais da literatura em que se inspira. Existe a engenhosidade dos golpes, como em todo filme-de-assalto em que primeiro vemos a descrição precisa do que os assaltantes planejam (e que esperamos que aconteça) e em seguida vemos o assalto real ocorrendo e os detalhes imprevistos sendo administrados na hora. Há um filme de Ronald Neame, com Shirley MacLaine, Como possuir Lissú, em que esse contraste entre planejamento e realidade é satirizado de forma impagável na sequência inicial.

Grande parte do sucesso da série está no modo como o protagonista, Omar Sy, mostra-se à vontade no papel, e encarna algumas das características do Lupin original: inteligência rápida, bom humor, charme sedutor (todos os romances de Arsène Lupin, que tinha um enorme público feminino nos anos 1920, incluíam um caso amoroso), agilidade e domínio das artes marciais, capacidade infinita de se disfarçar e “ficar invisível”.



Este último caso torna-se ainda mais interessante quando Omar Sy é um negro com uns dois metros de altura, características difíceis de apagar, e que põem ainda mais peso nas técnicas de despiste a serem usadas.

A primeira temporada tem como tema “O Colar da Rainha”, um famoso colar que teria sido de Maria Antonieta. É uma escolha sutil e uma homenagem delicada: “O Colar da Rainha” é um conto de 1906, incluído na coletânea inaugural da série, Arsène Lupin: Ladrão de Casaca, em que vemos uma raríssima aventura de Lupin ainda criança, começando precocemente sua carreira de ladrão de preciosidades. É um dos contos fundadores da tradição lupinesca.

Portanto, o que vemos na tela não é o Arsène Lupin inventado por Maurice Leblanc, mas Assane Diop, um garoto negro em quem o pai “aplicou” a literatura de Maurice Leblanc, e que a partir daí encarnou as qualidades de Lupin pra vingar o pai. A ética, inclusive. É curioso examinar a vasta literatura policial baseada em ladrões fictícios: Lupin, Raffles, o Sinete Cinzento (Jimmie Dale), o Santo (Simon Templar), Irving Le Roy, indo até John Robie, “o Gato”, interpretado por Cary Grant (Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock).

São ladrões porque têm o dom de furtar, mas em muitas de suas aventuras se comportam como detetives-por-conta-própria, perseguidos ao mesmo tempo pela polícia e por criminosos mais graves. Não são necessariamente aqueles Robin Hoods que roubam dos ricos para dar aos pobres. Não: roubam para si mesmos, para poderem fazer cruzeiros em transatlânticos, frequentar os cassinos de Las Vegas ou Mônaco, conquistar belas socialites e afanar a bolsa de condessas tatibitates.

Nada disso parece ser o objetivo de Assane Diop. Seu objetivo é destruir o milionário Pellegrini, que destruiu seu pai. A primeira temporada de 5 episódios traça com clareza essa linha entre o Lupin antigo e o “Lupin” moderno, e o gancho do episódio final deixa em aberto a questão mais interessante de todas: como vai ser o confronto entre o ladrão-especialista-em-Arsène-Lupin e o policial-especialista-em-Arsène-Lupin?