quarta-feira, 28 de agosto de 2024

5096) Episódios kafkeanos (28.8.2024)



 
 
Franz Kafka nasceu no ano da morte de Karl Marx, e morreu no ano do nascimento de Osman Lins. 
 
Os fatos enunciados acima não têm nenhuma relação causal ou simbólica entre si. São o que se pode chamar de justaposições inevitáveis, não são significativos. Todo ano nasce e morre gente, e nem sempre há uma relação causal, concreta, entre esses fatos. O problema com a relação simbólica é que ela depende apenas da nossa vontade e da nossa capacidade de inventar argumentos. 
 
Eu posso dizer (por exemplo) que a morte de Marx e o nascimento de Kafka, ambos ocorridos em 1883, marcam o fim da última tentativa de impor a Razão às sociedades humanas (o socialismo científico) e o começo da civilização do Absurdo, a civilização do capitalismo terminal (“terminal” para a humanidade, é claro), em que os processos de produção, lucro, informação e controle, desencadeados mais de um século antes, tomaram as próprias rédeas e transformaram os seres humanos (políticos, militares, bilionários) em meros executores, deslumbrados com a própria “riqueza” e o próprio “poder”. 
 
Poso dizer também que o fato de Kafka morrer em 1924 e Osman Lins nascer no mesmo ano constitui um marco divisório, agora no âmbito da Literatura. Morre o profeta do Absurdo, e nasce o futuro profeta da ordem estrutural: o romancista para quem um romance deveria ter a mesma complexidade de simetrias e equilíbrios que encontramos numa catedral gótica, num vitral, num bordado, num relógio de pêndulo, num observatório astronômico. 
 
Nenhuma dessas “teses” acima se sustentaria por muito tempo, mas é de teses assim que vive o jornalismo cultural (que é como eu classifico este blog e as publicações parecidas) e vivem os estudos acadêmicos. 
 
A Humanidade procura descobrir significado em tudo, precisa de significado, tem ânsia por sentido. Procura descobri-lo onde ele pode estar oculto, e procura inventá-lo onde ele não há. 
 
Jogue no colo de uma pessoa inteligente cinco ou seis informações aleatórias e prometa-lhe um prêmio se ela conseguir descobrir um nexo de significado entre todas elas – e aguarde o resultado. É como mostrar uma foto do céu estrelado e dizer: “Escolha algumas dessas estrelas, trace uma constelação e dê-lhe um nome.” Qualquer pessoa medianamente inteligente é capaz disso. 



 
Numa entrevista que pode ser vista no YouTube (em alemão, com legendas em inglês) Max Brod cita um episódio curioso de sua amizade com Kafka, na juventude. Kafka foi visitar Brod para bater papo, e ao chegar lá teve que atravessar uma sala onde o pai de Brod estava deitado num canapé, dando um cochilo. Ele deve ter feito algum ruído ao caminhar, porque o homem, semi-adormecido, fez algum movimento, e Kafka, muito discretamente, disse em voz baixa: “Considere-me um sonho”, e saiu da sala. 
 
Max Brod:
https://www.youtube.com/watch?v=v8iNnpP5tc4
 

 
Nesta entrevista, Max Brod comenta vários aspectos de sua amizade com Kafka, inclusive destacando o grupo de quatro amigos que se visitavam e se reuniam com frequência em suas respectivas casas (Kafka era o único solteiro, e que ainda morava com os pais): Kafka, Brod, o filósofo Felix Weltsch (1884-1964) e o poeta e músico cego Oskar Baum (1883-1941). 



(Felix Weltsch)




(Oskar Baum)


Sobre o famoso pedido de Kafka para que Brod destruísse seus manuscritos após sua morte, Brod esclarece que esse pedido não foi feito pessoalmente, nem através de um testamento formal. Foi apenas um bilhete, sem data, que Brod achou entre os papéis do amigo. Para Brod, Kafka tinha oscilações (como qualquer pessoa) entre momentos de otimismo e de pessimismo, mas que em seus últimos dias estava num momento feliz, principalmente através de seu relacionamento com Dora Diamant (1900?-1952). 
 
A palavra de Brod vale alguma coisa? “Amigo é pressas coisas”, diz a sabedoria popular. Brod tornou-se uma espécie de executor testamentário informal com relação à obra do amigo. Suas opiniões ganharam visibilidade, por um lado, e perderam credibilidade, por outro. Depois que uma pessoa morre e não pode comentar, fica fácil dizer coisas elogiosas ou desairosas a seu respeito. 
 
Walter Benjamin critica, num texto de 1938, essa atitude de Max Brod, que ele qualifica como uma “intimidade ostentosa”: algo que encontramos com frequência em biógrafos, confidentes, melhores-amigos, e até em pessoas que em algum momento conviveram com o morto ilustre. “Às vezes, ele costumava desabafar comigo, e dizer que...” Não há poucos casos de amigos que, cuidando da obra póstuma de alguém, querem impor sua visão da obra como a única válida, pela proximidade que tiveram com o autor.  
 
No centenário da morte de Kafka, ocorrido pouco tempo atrás, a imprensa fervilhava de cogitações e especulações sobre sua vida e sua morte. 
 
Para mim, a imagem mais forte de toda a obra de Kafka não é o rapaz transformado em inseto (A Metamorfose), nem a Estátua da Liberdade empunhando uma espada (América), nem o faquir que se deixa morrer de fome numa jaula porque nenhuma comida lhe apetece (Um Artista da Fome), nem o homem que se considera inocente mas é degolado “como um cão” num terreno baldio (O Processo)... 
 
É a máquina de tortura em Na Colônia Penal, em que o condenado é amarrado e um mecanismo complicado usa agulhas pontudas para escrever na sua pele a sentença que lhe foi destinada.  O prisioneiro fica tentando atribuir sentido às linhas dolorosas que a máquina desenha em seu corpo, sem poder enxergá-las. Atribuir sentido à própria dor, por confiar que existe um sentido (=verbal) na dor que sente. 
 
Jorge Luís Borges elogiava em Kafka sua disposição em inventar parábolas estranhas mas não lhes atribuir uma “moral da história”, como procurava fazer, por exemplo, Nathaniel Hawthorne. O adjetivo “kafkeano” está agora acoplado às reflexões sobre o nazismo, o inchaço burocrático, as tarefas insensatas, a infinita procrastinação das tarefas, a passividade diante da violência alheia... 
 
Além disso tudo, Kafka tinha uma queda pelos animais como protagonistas ou figurantes bizarros de seus textos (“Josefina, a Cantora”, “Investigações de um Cão”, “A Toupeira”, “Relato Para uma Academia”, o sonho do Macaco de Tinta). Usava regiões remotas, em geral no Oriente, para situar suas parábolas políticas. Suas ficções, longas ou curtas, têm um clima crepuscular, claustrofóbico, inquisitorial, parecem acontecer no sótão do mundo. Sucedem-se comportamentos bizarros que não sabemos se devemos atribuir à imaginação do autor ou aos hábitos de sua cultura. 
 
Enfim, lemos Kafka como um tcheco talvez leia Jorge Amado: sob a impressão de que tudo aquilo tanto pode ter a intenção do realismo quanto a do absurdo, porque basta-nos viajar pelo mundo para constatar o quanto é falso vincular o conceito de Realidade à nossa bolha sociológica. 




Pouco tempo atrás, num prefácio para Contemplação, livro de estréia de Kafka, publicado em 2021 pela Ed. Bandeirola (com tradução de Marcus Tulius Franco Morais), escrevi: 
 
[O mundo de Kafka] é o mundo dos labirintos de videogames, onde o avançar cria mais e mais bifurcações à frente do jogador que avança; onde, a meia distância, existe apenas uma nuvem cinza de probabilidades, mas um novo espaço aparentemente real começa a brotar no instante em que o personagem para lá se encaminha.  É um mundo imóvel onde o personagem está sempre no centro, andando sem parar. 
 
Essa sensação de irrealidade ativa, em que temos plena liberdade de movimentos mas nada que fazemos tem sentido, perpassa também os Sonhos e os Diários de Kafka, esse indivíduo tímido, arguto, obstinado, que enxergou nosso mundo melhor do que nós. 
 
“Considere-me um sonho,” disse ele, e saiu.