terça-feira, 24 de junho de 2025

5186) Os ditadores delirantes (24.6.2025)



(Paulo Autran, em Terra em Transe)


 
O livro Cartas do Boom (Alfaguara) reúne a correspondência reunida de Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e Gabriel Garcia Márquez, que se auto-denominavam com bom humor “a Máfia”. Quatro escritores considerados os maiores responsáveis pelo “boom” editorial da literatura latino-americana a partir de meados da década de 1960.
 
Uma boa parte das cartas mostra os quatro amigos trocando informações de agenda, tipo “tal mês estarei na Venezuela, se você puder apareça por lá”, ou “Fulano nos convidou para um congresso em Barcelona, indiquei seu nome”. Mas as discussões sobre mercado editorial e sobre a literatura em si são constantes, extensas e muito compensadoras. 
 
A certa altura, Carlos Fuentes propôs aos colegas um projeto (que acabou não se concretizando) de um livro de ensaios onde cada um deles escreveria um ensaio sobre um ditador de seu país.  Ele sugere como possíveis títulos: “Os Patriarcas”, “Os Pais da Pátria”, “Os Redentores”, “Os Benfeitores”... 
 
O Ditador Delirante é um arquétipo essencial da literatura da América Latina; entre outras razões, por ser um arquétipo que ocorre com frequência na vida real. 
 
O Poder Absoluto corrompe absolutamente, e é difícil encontrar um Autarca de qualquer feitio que não sinta em algum momento a tentação desse abismo. Tentação ainda maior quando o Autarca não chegou ao poder pela via pachorrenta e consensual do sangue hereditário, mas apossou-se do trono ou da cadeira presidencial de arma em punho, mandando os opositores para a sepultura coletiva. 
 
Uma folheada vagarosa de As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano pode nos encher todo um caderno com ótimos exemplos de indivíduos todo-poderosos que resolveram testar os limites do próprio poder, e nele se refestelaram, se espojaram, se lambuzaram, se prostituíram. 




Garcia Márquez, que na época se preparava para escrever o seu O Outono do Patriarca, entusiasmou-se com a proposta de Fuentes. 
 
“Meu candidato é o general Tomás Cipriano de Mosquera, aristocrata, antigo oficial de Bolívar, que assumiu quatro vezes a presidência. Por certo, tem muito do teu Santa Anna. Don Tomás estava completamente louco, e sem embargo foi um grande homem; o primeiro liberal que se contrapôs à febre ditatorial do Libertador, e que, como é lógico, acabou por sua vez tornando-se ditador. Tinha a mandíbula toda reconstituída em prata, e vestia-se, em seu segundo mandato, como os reis da França, e era cruel, arbitrário, verdadeiramente progressista e muito bom escritor. Expulsou os jesuítas do país, a começar por seu próprio irmão, que era arcebispo primaz de Bogotá. Já em plena decadência, louco e alcoólico, andava com seu velho sabre perseguindo os meninos que zombavam dele no meio da rua. Foi se queixar ao presidente, e como este não fez caso, expulsou-o do palácio a pontapés e se proclamou general chefe supremo pela terceira vez. Enfim – está incluído na galeria dos Pais da Pátria. 
 
(...) É necessário, além disso, que algum escritor salvadorenho resenhe o mais curioso de todos: o general Maximiliano Hernández Martinez, teósofo, que inventou um pêndulo pra averiguar se os alimentos estavam envenenados, e fez tapar com papel vermelho toda a iluminação pública do país, para combater a peste. Tudo isto em 1944!” 
(Garcia Márquez para Carlos Fuentes, 5-6-1967, trad. BT)
 
A certa altura, Carlos Fuentes, o mais entusiasmado, envia para Garcia Márquez um resumo da estrutura possível dessa antologia. 
 
Até o momento, então, a coisa está com o seguinte perfil: 
 
CUBA: Carpentier: Machado
MÉXICO: Fuentes: Santa Anna
COLÔMBIA: Garcia Márquez: Mosquera, ou Melo?
VENEZUELA: Otero Silva: Gómez
PERU: Vargas Llosa: Sánchez Cerro
CHILE: Edwards: Balmaceda
PARAGUAI: Roa Bastos (já aceitou entusiasmado): Francia
ARGENTINA: Cortázar: Eva Perón
(Carlos Fuentes para Garcia Márquez, 5-7-1967)

 




Na nota 336 de Las Cartas del Boom, os editores advertem que o projeto – fascinante, mas de execução complexa – nunca se realizou, mas pode ter influenciado os autores na realização de obras paralelas. 
 
Carpentier viria a escrever seu romance de ditador anos depois, com O Recurso do Método (México, Siglo XXI, 1974), baseando-se principalmente em Guzmán Blanco, da Venezuela; e Roa Bastos faria seu próprio livro com Eu, o Supremo (Buenos Aires, Siglo XXI, 1974), baseado no doutor Francia. Carlos Fuentes escreveria, décadas depois, o libreto da ópera Santa Anna (Barcelona, Ediciones Originales, 2007), com música de José Maria Vitierm e seu entusiasmo em converter Trujillo em personagem literário seria recompensado através da A Festa do Bode, de Vargas Llosa.
 
O Romance do Ditador ocupa uma prateleira fascinante em nossa literatura. Chegou mesmo a seduzir autores de origem e formação totalmente diversa. Edward Lucas White (1866-1934) era um escritor de Baltimore, hoje famoso por seus contos de horror, tais como “Lukundoo” ou “Amina” (que incluí na minha antologia Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007). Aos 19 anos de idade, com problemas de saúde, White resolveu fazer uma viagem e pegou um navio para o Rio de Janeiro. Um dos resultados dessa viagem foi El Supremo: a Romance of the Great Dictator of Paraguay, romance de 700 páginas publicado em 1916 com grande sucesso de crítica e público, tendo várias edições sucessivas. Seu tema é o mesmo “Francia” do livro de Roa Bastos: José Gaspar Rodrígues de Francia, ditador do Paraguai de 1814 a 1840.




Na composição do elenco dessa antologia visionária, os autores fazem uma das raras menções à literatura brasileira. A correspondência dos autores do Boom é mais um testemunho de que há duas Américas contíguas, a América de fala espanhola e o Brasil. São casas na mesma rua, cujas famílias se avistam e se cumprimentam à distância, e de vez em quando até se visitam. Mas sabem que pertencem a diferentes clãs, diferentes fidelidades. 
 
A idéia seria escrever uma crônica negra de nossa América: uma profanação dos profanadores, na qual, p. ex., Edwards faria um Balmaceda, Cortázar um Rosas, Amado um Vargas, Roa Bastos um Francia, Garcia Márquez um Gómez, Carpentier um Batista, eu um Santa Anna e tu um Leguía.. ou outro prócer peruano. Que te parece? 
(Fuentes a Vargas Llosa, 11-5-1967)



Nesse projeto, Jorge Amado iria escrever sobre Getúlio Vargas: nada mais adequado, visto que Jorge ambientou nessa quadra histórica seu pomposo romance Os Subterrâneos da Liberdade (1954), depois desmembrado em trilogia (Os Ásperos Tempos / Agonia da Noite / A Luz no Túnel).  Foi a fase em que a literatura de Jorge foi dominada pelo que poderíamos descrever como, mais do que “realismo socialista”, uma espécie de “realismo stalinista” – um curioso oxímoro. Mas Vargas aparece como parte do cenário, não como seu ponto focal. Quem é o grande ditador fictício de nossa literatura? Não sei responder.



 
Temos alguns livros sobre personagens despóticos, mas não consigo lembrar agora de nenhum que seja cortado no mesmo molde de O Senhor Presidente de Miguel Ángel Astúrias (1946) ou de O Outono do Patriarca. Há muitos romances ambientados na época da ditadura militar, alguns indo na direção do realismo crítico, outros na direção da alegoria; mas não me ocorre nenhum romance brasileiro onde se destaque, no centro de tudo, a figura de um Ditador ficcional. 

A nós, coube abordar esse arquétipo através do cinema: acho que em qualquer avaliação transversal desse tema (uma avaliação que não se detenha numa única forma de narrativa) filmes de Glauber Rocha como Terra em Transe (1966) e Cabeças Cortadas (1978) são exemplos perfeitos de como esses ditadores se formam, se erguem e depois desabam.