“Meu candidato é o general Tomás Cipriano de Mosquera, aristocrata, antigo oficial de Bolívar, que assumiu quatro vezes a presidência. Por certo, tem muito do teu Santa Anna. Don Tomás estava completamente louco, e sem embargo foi um grande homem; o primeiro liberal que se contrapôs à febre ditatorial do Libertador, e que, como é lógico, acabou por sua vez tornando-se ditador. Tinha a mandíbula toda reconstituída em prata, e vestia-se, em seu segundo mandato, como os reis da França, e era cruel, arbitrário, verdadeiramente progressista e muito bom escritor. Expulsou os jesuítas do país, a começar por seu próprio irmão, que era arcebispo primaz de Bogotá. Já em plena decadência, louco e alcoólico, andava com seu velho sabre perseguindo os meninos que zombavam dele no meio da rua. Foi se queixar ao presidente, e como este não fez caso, expulsou-o do palácio a pontapés e se proclamou general chefe supremo pela terceira vez. Enfim – está incluído na galeria dos Pais da Pátria.(...) É necessário, além disso, que algum escritor salvadorenho resenhe o mais curioso de todos: o general Maximiliano Hernández Martinez, teósofo, que inventou um pêndulo pra averiguar se os alimentos estavam envenenados, e fez tapar com papel vermelho toda a iluminação pública do país, para combater a peste. Tudo isto em 1944!”(Garcia Márquez para Carlos Fuentes, 5-6-1967, trad. BT)
Até o momento, então, a coisa está com o seguinte perfil:CUBA: Carpentier: MachadoMÉXICO: Fuentes: Santa AnnaCOLÔMBIA: Garcia Márquez: Mosquera, ou Melo?VENEZUELA: Otero Silva: GómezPERU: Vargas Llosa: Sánchez CerroCHILE: Edwards: BalmacedaPARAGUAI: Roa Bastos (já aceitou entusiasmado): FranciaARGENTINA: Cortázar: Eva Perón(Carlos Fuentes para Garcia Márquez, 5-7-1967)
Carpentier viria a escrever seu romance de ditador anos depois, com O Recurso do Método (México, Siglo XXI, 1974), baseando-se principalmente em Guzmán Blanco, da Venezuela; e Roa Bastos faria seu próprio livro com Eu, o Supremo (Buenos Aires, Siglo XXI, 1974), baseado no doutor Francia. Carlos Fuentes escreveria, décadas depois, o libreto da ópera Santa Anna (Barcelona, Ediciones Originales, 2007), com música de José Maria Vitierm e seu entusiasmo em converter Trujillo em personagem literário seria recompensado através da A Festa do Bode, de Vargas Llosa.
O Romance do Ditador ocupa uma prateleira fascinante em nossa literatura. Chegou mesmo a seduzir autores de origem e formação totalmente diversa. Edward Lucas White (1866-1934) era um escritor de Baltimore, hoje famoso por seus contos de horror, tais como “Lukundoo” ou “Amina” (que incluí na minha antologia Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007). Aos 19 anos de idade, com problemas de saúde, White resolveu fazer uma viagem e pegou um navio para o Rio de Janeiro. Um dos resultados dessa viagem foi El Supremo: a Romance of the Great Dictator of Paraguay, romance de 700 páginas publicado em 1916 com grande sucesso de crítica e público, tendo várias edições sucessivas. Seu tema é o mesmo “Francia” do livro de Roa Bastos: José Gaspar Rodrígues de Francia, ditador do Paraguai de 1814 a 1840.
Na composição do elenco dessa antologia visionária, os autores fazem uma das raras menções à literatura brasileira. A correspondência dos autores do Boom é mais um testemunho de que há duas Américas contíguas, a América de fala espanhola e o Brasil. São casas na mesma rua, cujas famílias se avistam e se cumprimentam à distância, e de vez em quando até se visitam. Mas sabem que pertencem a diferentes clãs, diferentes fidelidades.
A idéia seria escrever uma crônica negra de nossa América: uma profanação dos profanadores, na qual, p. ex., Edwards faria um Balmaceda, Cortázar um Rosas, Amado um Vargas, Roa Bastos um Francia, Garcia Márquez um Gómez, Carpentier um Batista, eu um Santa Anna e tu um Leguía.. ou outro prócer peruano. Que te parece?(Fuentes a Vargas Llosa, 11-5-1967)
A nós, coube abordar esse arquétipo através do cinema:
acho que em qualquer avaliação transversal desse tema (uma avaliação que não se
detenha numa única forma de narrativa) filmes de Glauber Rocha como Terra em
Transe (1966) e Cabeças Cortadas (1978) são exemplos perfeitos de
como esses ditadores se formam, se erguem e depois desabam.