sábado, 24 de fevereiro de 2024

5035) "True Detective 04: Night Country" (24.2.2024)



 
Desde o romance gótico do século 18 a narrativa fantástica começou a opor duas visões do mundo, representadas por dois personagens típicos: o Crente e o Cético. (Às vezes uso um parâmetro mais explicativo: o “Mulder” e a “Scully”.) Em geral, a história termina com as convicções do Cético sendo abaladas e a confirmação de que o sobrenatural existe. Ou pelo menos, quando se encerra sem “bater o martelo”, com um recado indireto, uma advertência de que “existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa filosofia”. 




Tenho interesse especial numa variante desse tipo de narrativa, que mistura a racionalidade do romance detetivesco clássico com a irrupção do irracional no mundo. Este é o tema da antologia que organizei em 2014 para a Casa da Palavra, Detetives do Sobrenatural, onde a mentalidade analítico-científica é posta à prova o tempo todo. 
 
Em True Detective 04: Night Country (escrito e dirigido por Issa López) o Cético é a detetive Liz Danvers: branca, pragmática, autoritária, irritadiça; o tipo que se impacienta diante de qualquer menção a animismo e reage de maneira sarcástica, agressiva. O Crente é a detetive Evangeline Navarro: de raça inuit do Alaska, vigorosa, igualmente pragmática, reservada, compassiva, tentando administrar uma herança nativa incompleta (ela recebeu um nome “evangélico” e desconhece seu nome tribal). 



(Kali Reis e Jodie Foster)

 
Cada época elege temas, imagens, situações recorrentes, que acabam constituindo uma espécie de memória coletiva. Diretores deixam-se impressionar por imagens que viram em outros filmes e acabam trazendo essas imagens de voltam quando dirigem seus próprios filmes – transformadas, retocadas, recompostas. E dialogando umas com as outras. 
 
Às vezes, quando examinamos obras de 100 ou 200 anos atrás, deixamos de perceber certas coisas porque são diálogos com obras que eram contemporâneas ao seu autor – e que hoje ninguém lembra, ninguém sabe, eram obras menores e foram esquecidas. 



(a diretora e roteirista Issa López)

A roteirista/diretora Issa López cita como influências nesta temporada o filme de John Carpenter The Thing (“O Enigma do Outro Mundo”, 1982), onde uma base de cientistas na Antártica é atacada por um alienígena predador e incompreensível. As referências são muitas e óbvias. 
 
Referências narrativas igualmente ominosas vêm da série O Terror (David Kajganich, baseado no livro de Dan Simmons) e do misterioso evento da Expedição Dyatlov, um grupo de cientistas e estudantes russos que morreu nas montanhas da Sibéria. (O detalhe da língua arrancada à vítima é tipicamente Dyatlov. O mesmo para a explicação fajuta das autoridades sobre “avalanche + hipotermia” para a morte do grupo.) 
 
Sobre este caso:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Incidente_do_Passo_Dyatlov
 
Todas as histórias baseadas em regiões polares e geladas acabam se parecendo, mas creio que não seja exagerado notar a afinidade de Night Country com os quadrinhos 30 Days of Night (Steve Niles & Ben Templesmith, 2002), em que vampiros aproveitam os trinta dias sem sol para infernizar um vilarejo do Alasca; e Takla, série islandesa de Baltasar Kormakur e Sigurjon Kjartansson (2021), onde nas vizinhanças de um vulcão gelado começam a aparecer pessoas que haviam morrido mas retornam em carne e osso. 



 
Não são apenas as semelhanças de ambientação gélida, assombrações inexplicáveis, mortes horripilantes. Night Country  mostra uma dupla de she-cops duronas, vulneráveis, antipatizadas por uns e protegidas por outros, numa cidadezinha onde todo mundo se conhece e ambas têm que prestar contas de um passado. Bem na linha de Mare of Easttown (com Kate Winslet) e da xerife com sangue índio (Tamara Podemski) na primeira temporada de Outer Range (aquela série faroeste-fantástico em que Josh Brolin descobre um abismo-portal em sua fazenda). 
 
Toda esta enumeração é apenas para reafirmar o que falei acima: há tipos humanos, situações fantásticas, ambientes insólitos, que reaparecem durante algum tempo em dezenas de obras diferentes, e isto acontece por duas razões principais. 
 
A primeira é que o público reage bem; esses elementos parecem corresponder a algum tipo de arquétipo inconsciente que nos fascina, nos inquieta, nos repele e ao mesmo tempo nos atrai. A segunda é que, pelo mesmo motivo, roteiristas e diretores, quando estão reunidos em torno de uma mesa escolhendo elementos para começar a compor uma narrativa, apontam um deles com o dedo e dizem algo tipo: “Vamos usar isto aqui. Já foi usado, mas ainda pode render pra caramba. Ainda dá pra tirar uma cem coelhos dessa cartola”. 



 
São temas que fazem parte desta imensa paella narrativa que coloca numa tigela imensa o horror, a narrativa policial, a fantasia, a ficção científica. A presença invisível mas opressiva de entidades sobrenaturais que causam o Mal no mundo. A sobrevivência de forças ancestrais que tiveram sua terra invadida e pressionam há séculos para expulsar os invasores. A volta dos mortos, porque nesse sistema de crenças simbólicas nenhuma pessoa morre enquanto existir alguém que pense nela. Os ajustes de contas com erros do passado, que parecem ter sido deixados para trás mas estão à nossa espera na próxima esquina. O choque sempre cruel entre as crenças dos civilizados e as crenças dos primitivos, e não se sabe quais são as mais brutais. A violentação da Natureza pela cegueira predatória de bilhões de criaturas que precisam de comida e água todo dia. 
 
Night Country puxa para si cada um desses temas tão batidos e tão essenciais, e os requenta e os revigora à sua maneira, ao ambientá-los no Alasca, na cidade fictícia de Ennis (talvez uma homenagem a Garth Ennis, autor de Preacher, The Punisher, etc.).




 
O Alasca é um corpo estranho que os EUA ocuparam por motivos estratégicos/geográficos, mas não sabem direito o que fazer com ele. É como uma Lua remota e um tanto lucrativa, habitada por descendentes de astronautas e por humanóides locais, soturnos, desconfiados. São os inuit, nome que aos meus ouvidos roseanos-trocadilhescos guarda ressonâncias de “nuit” (=noite) e de “inoui” (=inaudito, nunca-ouvido, desconhecido).
 
O “night country” do título, o País da Noite, é o labirinto de cavernas geladas onde alguém pode se deparar tanto com um monstro quanto com um laboratório secreto, mantido pelo equivalente moderno das hidras-de-7-cabeças – as megacorporações que transformam em zumbis seus funcionários, seus cientistas, seus executivos todo-poderosos. 



 
“Tsalal”, a estação científica onde ocorre o massacre do primeiro capítulo, é um nome extraído da Narrativa de Arthur Gordon Pym (1838), de Edgar Allan Poe, uma história ambientada na região antártica, perto do Polo Sul. É o nome de uma ilha por onde passam Pym e seus companheiros, nome retomado depois na continuação do livro escrita por Jules Verne, A Esfinge dos Gelos (1897). As séries de TV praticam uma obsessiva referencialidade, em que nomes próprios servem como indicadores de afinidade, de influência, uma espécie de sinalização de que “tudo isto se situa no mesmo universo de idéias”. 
 
Essa referencialidade funciona, em obras de ficção, como as citações bibliográficas num “paper” acadêmico. Podem servir como sugestão de aprofundamento, mas o texto principal precisa ter “sustança”, ou substância. Night Country tem uma boa proposta, uma realização meio atabalhoada (em que “o longo braço da coincidência”, como diria Hercule Poirot, precisa quebrar uma série de galhos), e inúmeras cenas excelentes como pequenas peças dramáticas onde o elenco se mostra à altura. 
 
Os problemas da série são do roteiro: implausibilidade, soluções de conveniência, etc. E quando os personagens pretendem se referir a forças cósmicas, ou a arquétipos cataclísmicos do universo, usam um vocabulário (“o tempo é um círculo plano!...”) ginasiano. Pode soar portentoso a um leitor de horror, mas um leitor de ficção científica cobre o rosto. Esse “mumbo-jumbo” que não diz nada já apareceu em momentos da temporada 01 da mesma série, e na série alemã Dark (que era até muito boa, pelo meu gosto) quando os escritores repetiam sem cessar alguns chavões sobre Espaço e Tempo, mas aparentemente não sabiam direito o que estavam tentando exprimir, se é que estavam. 
 
Night Country, para mim, foi uma boa temporada desta série, até porque não fico cultivando expectativas, pelo contrário. Em termos de verossimilhança narrativa, não está muito distante da maioria do repertório da DarkFlix. O lado humano, dos conflitos inter-pessoais, é o que conduz a narrativa, e com isto ela acaba virando uma alegoria satisfatória do mundo de hoje. 
 
Sabemos que há uma catástrofe tremenda em curso, não entendemos direito suas razões (ou julgamos entendê-las por completo, o que é ainda pior), nos deparamos o tempo inteiro com carnificinas monstruosas e crimes impensáveis, e só nos resta tocar o barco da vida pessoal e do trabalho diário, e aguardar os acontecimentos. Não há nenhuma força superior, boa ou má, tomando conta do mundo. E, como diz Navarro, “estamos todos sozinhos, mas Deus também está sozinho”.