quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

3693) Natal 2014 (25.12.2014)



(foto: Andrei Tarkovsky)

1.
...range-range, engatada, a engrenagem
das esferas concêntricas do espaço,
de um continuum mais tênue do que o aço
onde giram os cosmos-rolimãs.
Brabeja o sol a esturricar manhãs.
Assopra a noite a cinza vã do dia.
Dói-me hoje um pensar que não doía
e o gargalo se estreita onde sufoco.
Cada dia é a tecla, a tal que eu toco,
a compor o melódico desenho

2.
em que o mundo a girar nem franze o cenho
espalhando espirais nos horizontes...
Mas não me mostres, mundo. Não me contes         
mais histórias de ti, já sei de tantas!
Já basta o sonho de que me levantas
toda manhã, embrutecido e lasso,
e cambaleio e tombo, passo a passo,
buscando o espelho pra que se confirme
a minha identidade, e despedir-me
do sono aconchegante em que capoto.

3.
Acordar de manhã é terremoto.
Abrir caixa de emails é tsunami.
E o dia inteiro é tempo de desmame
me tirando do turbilhão onírico.
E eu salto assim de um mundo de De Chirico
aos talk-shows da Globo matutina,
onde já ferve a escuma natalina
da busca do consumo a qualquer preço,
e tomo, com o estômago ao avesso,
o café fraco deste fim de vida.

4.
Quanto pinheiro e bola colorida,
ouro de tolo, neve de algodão!
Fumega ainda o resto da eleição
que devastou da pátria a auto-estima.
Quebra-o-pau pra valer no andar de cima
e a gente aqui, pensando em crediário.
Por que o espelho me sussurra: “Otário!”
e eu torço tanto pra que acabe logo?
Dezembro é o velho poço em que me afogo
tendo somente o sol por testemunha.

5.
Mas este ano foi de arrancar unha,
e eu nem sei se me escapuli inteiro,
com vergonha de ser um brasileiro
que se acha melhor do que o Brasil.
O povo à rua sai, com-mais-de-mil,
e tudo volta ao que já estava antes;
última-forma no quartel de Abrantes,
“plus ça change, plus c’est la même chose”,
nossa democracia é mera pose
e no fundo quem manda é o Grande Irmão.

6.
Sigo em busca do derradeiro Não
pelas curvas da estrada do Talvez.
Resta pouco a cumprir, menos de um mês,
de sorriso e champanhe obrigatórios.
Os Natais se parecem aos velórios
em tensão, em teatro coletivo.
Cada qual se contenta de estar vivo
o resto é lucro, mesmo sem ter resto.
Basta tocar a musiquinha, e, “presto!”:
o milagre acontece novamente.

7.
O que vai ser de nós, daqui pra frente?
Os dados, como sempre, estão girando,
como o planeta, e não se sabe quando
(e se) vão colapsar, dizendo “fim”.
Enquanto isto, o que restar de mim
vai batucar as letras do teclado,
saborear a cerva, olhar de lado,
rir em silêncio da comédia humana...
Feliz Natal, galera. A vida engana,
e o melhor de um deserto é a miragem...