quinta-feira, 22 de outubro de 2009

1311) “Estamira” (26.5.2007)




Este impressionante documentário de Marcos Prado andou ganhando prêmios por aí e recebendo elogios da crítica. Consegui vê-lo em João Pessoa, na recente edição do Cineport, onde ele mais uma vez foi premiado. 

É um filme que nos marca pela tragédia humana que revela, e pela grandiosidade de suas imagens. Infelizmente, é o tipo do filme que aparece resumido assim nos roteiros de jornal: “Documentário sobre uma mulher esquizofrênica que vive de catar lixo na periferia do Rio”. 

Não é um resumo dos mais convidativos, e muita gente vai deixar de ver um dos melhores filmes brasileiros da atualidade.

Estamira é a personagem central, uma mulher nascida numa família de classe média que foi decaindo financeiramente até acabar praticamente na miséria. Aos 60 e tantos anos, ela cata lixo e mora numa casa humilde. 

Submeteu-se durante quatro anos a tratamentos variados em hospitais psiquiátricos. Durante esse período o diretor a acompanhou, registrando cenas do seu trabalho e fazendo entrevistas com ela e seus parentes.

Estamira é mais uma figura inesquecível na galeria de doidos iluminados brasileiros, junto com Artur Bispo do Rosário, com o Fernando Diniz cujos quadros aparecem em Imagens do Inconsciente, com a escritora Maura Lopes Cançado (autora de Hospício é Deus), com a protagonista do recente documentário Stella do Patrocínio

Todos eles são pessoas clinicamente consideradas doentes mentais, mas as coisas que pensam, dizem e fazem nos levam a reavaliar não apenas o nosso conceito do que é razão ou loucura, mas a pensar em como a sociedade é despreparada para lidar com suas próprias exceções.

O que mais empolga no filme é o modo como o diretor usa imagem e som escrupulosamente realistas para nos dar a sensação de que estamos mergulhados no universo alucinatório da personagem. 

Há uma cena magnífica filmada no lixão, quando uma tempestade se aproxima no horizonte, precedida por uma ventania que vai arrastando todo aquele lixo solto: sacos plásticos, papel, tufos de capim, pedaços de madeira, objetos pequenos, tudo sendo varrido por um vento que parece um princípio de furacão, enquanto Estamira, fincando pé contra a ventania, grita e esbraveja contra os elementos.

Simétrica a esta cena é a cena final, em que o diretor a leva para uma praia deserta, onde ela caminha em paz, mergulha os pés descalços na areia, aproxima-se do mar, cujas ondas parecem sentir sua aproximação e crescem, em paredões de espuma que se erguem a 10 ou 20 metros de altura e desmoronam com um ruído ensurdecedor. A onda arremete com força, derruba Estamira, que se molha toda, rola na areia, se reequilibra, ri, levanta, volta a esbravejar contra o Oceano sem que se entenda coisa alguma do que ela diz, porque o fragor da arrebentação é muito alto. 

Uma cena memorável, cinema puro, em que vemos a pequenez do ser humano diante das forças bravias do seu próprio Inconsciente.






1310) Milan 2x1 Liverpool (25.5.2007)



Dois anos atrás, Milan e Liverpool fizeram a final da Copa dos Campeões, que eu, pessoalmente, considero o melhor campeonato do mundo, melhor do que qualquer Copa do Mundo disputada por seleções. Mesmo antes da Seleção Brasileira pagar o mico histórico que pagou em 2006, eu já venho achando que os jogadores jogam melhor nos seus clubes europeus do que nas seleções dos seus países de origem. Uns dizem que é falta de patriotismo, outros dizem que é porque o clube paga fortunas e as seleções não pagam tão bem. Prefiro imaginar que o sujeito simplesmente passa 10 meses por ano jogando pelo clube. É uma convivência, é como um casamento, é um modo de vida. A Seleção aparece como uma obrigação periódica que vai tirá-lo do seu ambiente.

Voltando ao tema: em 2005, o Milan botou 3x0 no Liverpool e achou que a taça estava ganha. No segundo tempo, o Liverpool partiu para cima e encostou em 3x3. Nos pênaltis, o time dos Beatles ganhou o título merecidamente. Gerrard, capitão do Liverpool, afirma que na volta do intervalo os jogadores italianos tocaram com a ponta dos dedos na taça, ao retornar para o campo de jogo, o que segundo ele dá um azar danado.

Anteontem, a coisa foi diferente. Num jogo corrido e disputado, mas cheio de ferrolhos e de marcação duríssima, com poucas chances reais de gol, o Milan fez 1x0 no fim do primeiro tempo, numa cobrança de falta que resvalou no corpo do sortudo Inzaghi, que mesmo sem jogar nada foi o herói do jogo. No segundo tempo, os liverpudlianos partiram para cima, tiveram algumas chances, mas Kaká deu um jeito de botar Inzaghi novamente na cara do gol: 2x0. Tudo parecia liquidado quando o Liverpool aos 42 conseguiu um gol de cabeça, que deu emoção e desespero aos minutos finais, mas o jogo acabou com uma vitória merecida do Milan.

Um dos detalhes que acho mais interessantes nessa Copa é o fato de o jogo final ter sua sede marcada antecipadamente, sem que se saiba quem serão as equipes. Na final de 2005, Milan x Liverpool, um clube italiano e um clube inglês, jogaram em Istambul, na Turquia; anteontem, jogaram em Atenas, na Grécia. Ano passado, o Barcelona foi campeão derrotando o time inglês do Arsenal – em Paris.

Os melhores jogadores brasileiros disputam esse campeonato; nossa seleção está todinha ali. Os clubes são verdadeiras seleções internacionais, mesclando europeus, sul-americanos e africanos de grande talento. É o lado bom do grande capitalismo esportivo, num futebol onde, ao contrário do Brasil, os clubes têm estrutura e capital para usarem os empresários de atletas, em vez de serem usados por eles, como acontece com os clubes brasileiros em sua eterna pindaíba. Em vez de seleções nacionais repletas de estrangeiros jogando num país qualquer, temos jogos de ida e volta dos clubes diante de suas torcidas, sendo apenas a final em campo neutro. E durante cerca de seis meses a TV a cabo nos dá a chance de ver o melhor futebol do mundo.

1309) As árvores e a floresta (24.5.2007)


(Zé Lins, por Baptistão)

Num comentário sobre os romances do “ciclo da cana-de-açúcar” de José Lins do Rego, o saudoso presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde, assim se expressou: “José Lins do Rego consignou um dos fenômenos sociais mais típicos da civilização latino-americana no século XX, e, com isso, deu vida a uma galeria de tipos psicológicos que ficarão para sempre em nossas letras”. É um juízo elogioso com o qual concordo em princípio, só que eu reverteria a ordem do argumento. Eu diria assim: “José Lins do Rego deu vida a uma galeria de tipos psicológicos que ficarão para sempre em nossas letras, e, com isso, consignou um dos fenômenos sociais mais típicos da civilização latino-americana no século XX”.

Parece bobagem, mas não é. Se Zé Lins conseguiu reproduzir em seus romances o que era aquele mundo dos Engenhos, que ele conheceu tão de perto, foi devido a sua capacidade de criar personagens e mostrá-los em sua relação profunda com o ambiente. Ao contrário da ficção sociologizante, que parte sempre de conceitos gerais como se lidasse com uma vasta equação matemática, Zé Lins reconta as histórias individuais dos moleques, das iaiás, das negras velhas, dos cambiteiros, de todas aquelas pessoas que marcaram sua memória, e, por entender em retrospecto (depois de adulto, depois de muitas leituras) a história social que aconteceu ali, ele consegue partir, como rezam os manuais literários, “do particular para o geral”.

Hoje em dia essa ficção sociologizante, que teve um peso tão grande nas décadas do meio do século passado, está em baixa. Com o afrouxamento das ideologias de esquerda (que em grande parte sobrevivem apenas no meio universitário) os jovens literatos não têm preocupação alguma em “retratar condições sociais”. Não lhes falta assunto porque falam do seu umbigo, que por sinal é mais vasto do que seu vocabulário, então fica tudo em casa. Mas para quem quer ler os autores das gerações precedentes, é preciso entender que a literatura se dava então num outro “horizonte de expectativas” em que Autores, Leitores e Críticos avaliavam os livros de acordo com outros critérios.

Naquele tempo, escritores de esquerda bem-intencionados pretendiam descrever ambientes sociais de acordo com descrições generalizantes como “os intelectuais da pequena burguesia urbana apóiam os operários ms têm que enfrentam o conservadorismo dos camponeses, além do papel ambíguo da Igreja, que se divide entre o assistencialismo e o conformismo...” Munido de generalidades assim, os autores obrigavam os personagem a se comportar de acordo com tais abstrações, e o resultado eram personagem mecânicos, repetitivos. Zé Lins fazia o contrário. Tinha espírito de escritor capaz de desenhar cada árvore individualmente, sem perder de vista o modo como todas elas se juntavam para formar a floresta. Quem começa desenhando a floresta, jamais vai saber fazer uma árvore.

1308) I love America (23.5.2007)




A classe média brasileira experimenta há séculos um imenso movimento migratório mental rumo a outras culturas e outros estilos de vida que ela procura adotar como modelo, para limpar de si a sujeira de brasilidade que a contamina desde o nascimento. Quando o brasileiro começa a ganhar um dinheirinho a mais, toda sua ascensão social se volta para o estrangeiro. No começo do século 19 era Portugal, cem anos depois era a França, hoje em dia são os Estados Unidos. São culturas que imaginamos superiores à nossa: mais antigas, mais nobres, mais eruditas, mais elegantes, mais poderosas...

No caso da cultura norte-americana, sua sedução não é a antiguidade ou a sofisticação, e sim o poder do dinheiro e a superabundância de posses e lazeres que ele proporciona. Abrimos mão de aprender com os americanos algumas coisas positivas que eles têm – o profissionalismo, o respeito aos ofícios braçais e manuais, a simplicidade na linguagem (nosso linguajar acadêmico, um paródia opaca e atravancada do alemão e do francês, teria muito a aprender com a clareza norte-americana), a crença na autonomia e na liberdade individual. Em vez de imitar isto, imitamos o que os americanos têm de mais vulgar: a frivolidade, o consumismo, a passividade mental diante das telecomunicações, o provincianismo que se traduz em desprezo e desinteresse por diferentes culturas e diferentes maneiras de ver.

Quando uma loja brasileira em liquidação coloca um letreiro de “SALE” ou quando uma pizzaria anuncia “DELIVERY” na esquina estão na verdade querendo tornar-se membros de um clube que sempre os rejeitou. Nossos coleguinhas da América do Norte acham que somos plantadores de banana ou trepadores de coqueiro, mas, quem sabe? Talvez, se descobrirem que sabemos usar os termos ingleses com propriedade, percebam que somos seres humanos e civilizados iguais a eles, e facilitem nosso visto de entrada. Talvez, até, ingressos grátis para a Disneyworld – que aqui no Brasil nossa imprensa chama “a Disney”, com aquela pseudo-intimidade de gente inferior querendo se enturmar.

Quem vos diz isto, caros leitores, não é um nacionalista radical, nem um americanófobo. Conheço e amo a cultura norte-americana mais do que grande parte da própria população deles. São um povo grande e admirável. Nós também poderíamos sê-lo, mas preferimos a atitude bajulatória e subalterna de achar que, por serem eles grandes, são a única forma acessível de grandeza. Quem ama a cultura americana como eu amo sabe a dificuldade que eles tiveram para fugir da sombra da Literatura Inglesa, do Teatro Inglês, da Música Européia em geral. Criaram (não sem conflitos, não sem sofrimento) coisas como a ficção científica, o jazz, o filme de faroeste, o romance policial “noir”, as novelas gráficas, o rock, o filme musical. Têm sua linguagem própria, sua visão-do-mundo própria, e devemos admirá-los por isso. Macaquear e adular os outros, e ter vergonha de nossa própria cara, isso jamais.

1307) O moído de Romário (22.5.2007)



“Acabou-se o moído de Romário / e o Gol Mil tá rodando na TV...” Pois é, amigos, em matéria de moído o futebol brasileiro há muito tempo não acompanhava uma novela tão comprida. Domingo passado, um juiz misericordioso apitou um pênalte, entregou metaforicamente a bola a Romário, e disse: “Vamos, cidadão, porque o País está parado há mais de um mês esperando essa bola entrar”. Estou exagerando, claro, mas tudo que cerca o Maior Baixinho do Mundo conduz à metáfora, à hipérbole, à prosopopéia. A bola, entrou, isso é o que conta. (Pelo meu gosto teria sido no Náutico, mas é pedir demais aos Deuses do Futebol).

Os mil gols de Romário reacenderam uma discussão curiosa, a das estatísticas que cercam o futebol. Uma das coisas mais fascinantes do Esporte é o fato de que nele a Humanidade descobriu como juntar dois universos aparentemente inconciliáveis: o Corpo e o Número. Nada mais concreto, palpável, único, individualizado do que o Corpo humano. E nada mais abstrato, imponderável, genérico e universal do que o Número. O Esporte (futebol incluído) é acima de tudo uma arte e uma ciência de utilizar as potencialidades do corpo (força, energia, flexibilidade, agilidade, coordenação motora, rapidez, etc.) para gerar estatísticas comparativas, e através delas estabelecer quem fez melhor e quem fez pior, quem ganhou e quem perdeu. Quando um nadador ganha a medalha de ouro (e o outro a de prata) por uma diferença de centésimos de segundo, isto é uma façanha do Corpo, mas estabelecida no domínio do Número, por um critério que o Corpo não distingue, e somente a Mente e a Máquina podem comprovar.

Romário fez mil gols? Ele e sua equipe dizem que sim, e aí entra a discussão sobre o que é um gol de verdade. Vale jogo amistoso? Vale jogo beneficente? Se eliminássemos esses golzinhos de partidas não-oficiais o Baixinho estaria com pouco mais de 900. O mesmo se diz das contas que atribuem 1.176 gols ao húngaro Puskas em cerca de 1.300 partidas, ou, num resultado ainda mais impressionante, ao craque carioca Friedenreich, das primeiras décadas do século 20, a quem são atribuídos 1.329 gols (bem mais do que os 1.283 de Pelé), mas que, descontados os gols não oficiais, teria marcado 554 gols em 561 jogos.
Parece conversa de sujeito desocupado em balcão de botequim, não é mesmo? As mulheres sentem um soberano desprezo pela categoria “Homem” quando nos vêem entregues a esse tipo de contabilidade. Para elas, o Corpo tem uma existência autônoma em si próprio, sem precisar de números de qualquer espécie. Nós, curiosamente, temos a mania do Número. O Corpo é uma máquina de produzir estatísticas, índices, escores. Só somos capazes de entendê-lo através de tabelas numéricas que descrevem suas performances. Pensando bem, é um milagre que a gente seja capaz de distinguir, sem recurso ao Número, quando um sujeito é um craque e quando é um cabeça-de-bagre.