Este impressionante documentário de Marcos Prado andou ganhando prêmios por aí e recebendo elogios da crítica. Consegui vê-lo em João Pessoa, na recente edição do Cineport, onde ele mais uma vez foi premiado.
É um filme que nos marca pela tragédia humana que revela, e pela grandiosidade de suas imagens. Infelizmente, é o tipo do filme que aparece resumido assim nos roteiros de jornal: “Documentário sobre uma mulher esquizofrênica que vive de catar lixo na periferia do Rio”.
Não é um resumo dos mais convidativos, e muita gente vai deixar de ver um dos melhores filmes brasileiros da atualidade.
Estamira é a personagem central, uma mulher nascida numa família de classe média que foi decaindo financeiramente até acabar praticamente na miséria. Aos 60 e tantos anos, ela cata lixo e mora numa casa humilde.
Submeteu-se durante quatro anos a tratamentos variados em hospitais psiquiátricos. Durante esse período o diretor a acompanhou, registrando cenas do seu trabalho e fazendo entrevistas com ela e seus parentes.
Estamira é mais uma figura inesquecível na galeria de doidos iluminados brasileiros, junto com Artur Bispo do Rosário, com o Fernando Diniz cujos quadros aparecem em Imagens do Inconsciente, com a escritora Maura Lopes Cançado (autora de Hospício é Deus), com a protagonista do recente documentário Stella do Patrocínio.
Todos eles são pessoas clinicamente consideradas doentes mentais, mas as coisas que pensam, dizem e fazem nos levam a reavaliar não apenas o nosso conceito do que é razão ou loucura, mas a pensar em como a sociedade é despreparada para lidar com suas próprias exceções.
O que mais empolga no filme é o modo como o diretor usa imagem e som escrupulosamente realistas para nos dar a sensação de que estamos mergulhados no universo alucinatório da personagem.
Há uma cena magnífica filmada no lixão, quando uma tempestade se aproxima no horizonte, precedida por uma ventania que vai arrastando todo aquele lixo solto: sacos plásticos, papel, tufos de capim, pedaços de madeira, objetos pequenos, tudo sendo varrido por um vento que parece um princípio de furacão, enquanto Estamira, fincando pé contra a ventania, grita e esbraveja contra os elementos.
Simétrica a esta cena é a cena final, em que o diretor a leva para uma praia deserta, onde ela caminha em paz, mergulha os pés descalços na areia, aproxima-se do mar, cujas ondas parecem sentir sua aproximação e crescem, em paredões de espuma que se erguem a 10 ou 20 metros de altura e desmoronam com um ruído ensurdecedor. A onda arremete com força, derruba Estamira, que se molha toda, rola na areia, se reequilibra, ri, levanta, volta a esbravejar contra o Oceano sem que se entenda coisa alguma do que ela diz, porque o fragor da arrebentação é muito alto.
Uma cena memorável, cinema puro, em que vemos a pequenez do ser humano diante das forças bravias do seu próprio Inconsciente.