sexta-feira, 24 de setembro de 2021

4747) A linguagem da ficção científica (24.9.2021)



Samuel R. Delany descreve a ficção científica como um gênero literário onde as frases podem (e devem) ser lidas ao pé da letra.
 
Na literatura mainstream, quando um personagem diz: “Meu mundo foi destruído”, o leitor entende que a vida do cara se desestruturou por completo, perdeu o referencial; que as suas certezas desmoronaram, ele ficou sem parâmetros, etc. etc. Na FC, o leitor entende que um planeta explodiu, que sua população foi dizimada por bombas atômicas, etc. etc.
 
Isto é, aliás, um dos problemas de quando se dá um livro da FC para um tradutor que não tem familiaridade com o gênero. O tradutor está acostumado a ler frases como “meu mundo foi destruído” num sentido metafórico, e muitas vezes tem dificuldade em aceitar que o autor está querendo dizer aquilo literalmente.
 
Lembro uma conversa por telefone que tive com o saudoso José Sanz, tradutor e militante da ficção científica. Ele esbravejava (era o jeito dele) contra a tradução que fizeram de um livro de Philip K. Dick, em que um personagem vivia duas realidades paralelas, e o tradutor deu uma aconchambrada no texto, para que o texto “fizesse sentido” e tudo aquilo acontecesse no mesmo mundo – o que na história, é claro, não fazia o menor sentido.
 
Delany cita com deleite o exemplo clássico de uma história de Robert Heinlein, que dizia a certa altura: “The door dilated”. A porta se dilatou. Muitos filmes e contos de FC nos acostumaram com a idéia de portas que são aberturas (redondas, quadradas, etc.) na parede, que aumentam ou diminuem de tamanho, como o diafragma de uma máquina fotográfica.

 
Outro exemplo: em inglês existe o verbo “two-time” que significa ser infiel, trair a esposa ou o marido. “She was two-timing her husband.” O escritor inglês Bob Shaw tirou desse modo de falar coloquial uma história de FC, simplesmente levando ao pé da letra a expressão. The Two Timers (1968) é um romance em que um homem mata a esposa, que o estava traindo. Mas logo em seguida aparece um “duplo” seu, vindo de um universo paralelo, que tenta evitar o crime.
 
Certamente Bob Shaw leu a expressão “dois-tempos” num texto qualquer, ergueu os olhos da página e pensou: “Arrá!  Adultério... Crime... Tempos paralelos...”
 
É possível extrair idéias de FC simplesmente levando ao pé da letra expressões que todo mundo usa num sentido metafórico.



Os críticos inventaram a expressão “Space Opera” para designar as histórias de guerras e aventuras interplanetárias, no estilo de “Star Wars”. A ninguém ocorreu levar esse rótulo ao pé da letra, até que Jack Vance publicasse Space Opera (1965), a história de uma enorme espaçonave que viaja por entre os planetas, levando consigo uma companhia itinerante de ópera, com todos os seus barítonos e contraltos, seus cenários, sua orquestra...
 
Quando um texto de FC diz que apareceu na porta um homem de duas cabeças, não está se referindo a alguém com dupla personalidade. É um homem com duas cabeças físicas, com dois crânios, dois rostos, etc.  (Ainda estou pra ver uma história BOA de ficção científica em que apareça gente de duas cabeças; mas não é de qualidade que estamos falando.)



E de repente estou eu, aqui, lendo uma coletânea de contos de Shirley Jackson, uma grande escritora de histórias fantásticas (Hill House, “The Lottery” e outras) mas que nunca se aventurou pela ficção científica.
 
O conto chama-se “After you, my dear Alphonse” (1943) e foi publicado originalmente na revista The New Yorker. Em sua primeira frase, diz assim:
 
Mrs. Wilson was just talking the gingerbread out of the oven...
 
“Que bacana”, pensei. “A sra. Wilson estava convencendo o pão-de-mel a sair do forno...” 

Uma idéia interessante de ficção científica, não muito distante (e uma precursora, sem dúvida) daqueles contos de Philip K. Dick em que existem objetos falantes dentro da aparelhagem doméstica.
 
Há uma história de Dick que começa com o personagem acordando e recebendo o aviso de que seu condomínio está vencido. Ele troca de roupa para ir trabalhar, e a maçaneta da porta se recusa a abrir. Ele pragueja, e a maçaneta responde algo como:
 
– Mr. Smith, o senhor encontra-se em débito no pagamento dos encargos do condomínio. Enquanto o senhor não estiver regularizando esta situação, o apartamento permanecerá bloqueado.
 
– Ora que diabo! – exclama ele. – Como vou poder pagar, se não posso sair para trabalhar?!
 
E o pobre Smith fica ali, discutindo com uma maçaneta.
 
Tudo isto passou pela minha mente durante oito ou dez segundos, até que baixei de novo os olhos para a página e li:
 
Mrs. Wilson was just taking the gingerbread out of the oven...
 
Era “taking”, e não “talking”. A sra. Wilson estava tirando o pão-de-mel do forno.
 
Jorge Luís Borges dizia que cada gênero literário constrói um tipo novo de leitor, um tipo de leitor preparado (treinado, adestrado, amestrado, lavagem-cerebralizado) para ler aquele tipo de história. O conto policial, dizia ele, produziu o leitor desconfiado, o leitor que sabe que aquele escritor está tentando enganá-lo, está tentando evitar que ele descubra a verdade antes do capítulo final. E essa é a graça do gênero.
 
A ficção científica produziu esse leitor capaz de aceitar ao pé da letra uma imagem metafórica e imaginar cenas reais a partir delas.
 
“Furioso, ele fuzilou o patrão com os olhos.”
 
“O horizonte estava rubro com o nascer do sol.”
 
“Naquela tarde, fui convidado a tomar chá e conversar sobre literatura com os imortais.”
 
“Desculpa não ter te ligado, ontem à noite deu um bug na minha cabeça.”
 
“Meu filho vive no mundo da lua.”
 
“Nossa vizinhança anda cheia de alienígenas.”
 
“Sinto que eu e você somos uma pessoa só.”
 
As possibilidades, como sempre, são infinitas.