domingo, 29 de abril de 2012

2857) Cut-up fase 2 (29.4.2012)



O cut-up (tradução possível: “corta-corta”) é convencional. Interferências para desorientar os literários, que foi popularizada por William, do que pensa. Glauber Rocha, em seus últimos (1959), “Nova Express” (1964) e outros, com U, escrevendo “Brazyl”, etc. Hoje em dia, papel cheio de texto e misturar esses pedaços. Manifestações pop usam números que soam iguais, maneira diferente umas às outras. Alguns (“you”) empregam letras maiúsculas no interior. Folha em quatro retângulos (como quatro cartas) obriga o leitor a diminuir o ritmo da leitura e formando um retângulo vertical, que são sensação de estranheza gerada por esse processo. Você, leitor, está lendo agora na página do desconfiança e o senso crítico do leitor. “Fantasmo” é um texto submetido a esse questionadora. Na maioria dos casos, um texto “Ora diabo, mas para que tanta complicação”, parece um quebra-cabeças mal montado, que foi escrito. Há muitas respostas para lamentar – a não ser que alguma ditadura. A esmagadora maioria dos textos publicados corta como modo preferencial de apresentação convencional, e me atrevo a dizer que espero que nunca aconteça, mesmo conhecendo aparecem 10 milhões de páginas comuns. Movimentos de vanguarda, que, se pudessem, experimentos, de vez em quando? William: somente do jeito que eles descobriram ou continuidade forçava os leitores a uma leitura inquisitiva, diferente da leitura meio sonâmbula (e re-orientar) o leitor são mais comuns um método de produção aleatória de textos anos, abusava de usar letras como K, Burroughs em livros como “Almoço Nu”, a cultura do hip-hop e outras consiste em cortar em pedaços uma folha de certas palavras (“How R U = how are”), fazendo com que as frases se encaixem de das palavras (“tHe sATellITe”), o que fazem um corte em cruz, dividindo e decodificando palavra por palavra. De baralho bem juntas, duas a duas, pode (segundo alguns) despertar a misturados. Este texto, por exemplo, que numa atitude menos passiva e mais da Paraíba, ou no meu blog “Mundo” feito em corta-corta, como este artigo. Um leitor mais impaciente irá dizer: incomodando o juízo. Mas não é o caso de o que custava mostrar o texto do jeito vanguardista invente de proclamar o corta, pergunta tão legítima.  Uma delas é que gráfica de todos os textos do país – o que no mundo aparece justamente da maneira muito bem o pendor ditatorial de muitos cada página de cut-up publicada no mundo obrigariam um país inteiro a escrever que, então, não dar uma chancezinha aos inventaram Burroughs afirmava que essa quebra de mais atenta, mais desperta, mais que praticamos diante de um texto.








sábado, 28 de abril de 2012

2856) Cut-up fase 1 (28.4.2012)



(Letreiro do filme Nosferatu, de Murnau. O texto é em duas colunas, separado ao meio por uma linha vertical, mas lido como se fosse texto corrido produz um efeito semelhante ao do cut-up.)


O cut-up (tradução possível: “corta-corta”) é um método de produção aleatória de textos literários que foi popularizado por William Burroughs em livros como Almoço Nu (1959), Nova Express (1964) e outros. Consiste em cortar em pedaços uma folha de papel cheia de texto e misturar esses pedaços, fazendo com que as frases se encaixem de maneira diferente umas às outras.  Alguns autores fazem um corte em cruz, dividindo a folha em quatro retângulos (como quatro cartas de baralho bem juntas, duas a duas, formando um retângulo vertical), que são misturados. Este texto, por exemplo, que você, leitor, está lendo agora na página do Jornal da Paraíba ou no meu blog Mundo Fantasmo é um texto submetido a esse processo. [Veja amanhã o resultado.] Um leitor mais impaciente irá dizer: “Ora diabos, mas para que tanta complicação?  O que custava mostrar o texto do jeito que foi escrito?”. Há muitas respostas para essa pergunta tão legítima.  Uma delas é que a esmagadora maioria dos textos publicados no mundo aparece justamente da maneira convencional, e me atrevo a dizer que para cada página de cut-up publicada no mundo aparecem 10 milhões de páginas comuns. Por que, então, não dar uma chancezinha aos experimentos, de vez em quando?  William Burroughs afirmava que essa quebra de continuidade forçava os leitores a uma leitura mais atenta, mais desperta, mais inquisitiva, diferente a leitura meio sonâmbula que praticamos diante de um texto convencional.  Interferências para desorientar (e re-orientar) o leitor são mais comuns do que se pensa. Glauber Rocha, em seus últimos anos, abusava de usar letras como K, Y, etc., escrevendo “Brazyl”, etc.  Hoje em dia, a cultura do hip-hop e outras manifestações pop usa números que soam igual a certas palavras (“How R U = how are you”), ou emprega letras maiúsculas no interior das palavras (“tHe sATellITe”), o que obriga o leitor a diminuir o ritmo da leitura e ir decodificando palavra por palavra. A sensação de estranheza gerada por esse processo pode (segundo alguns) despertar a desconfiança e o senso crítico do leitor, colocando-o numa atitude menos passiva e mais questionadora. Na maioria dos casos, um texto feito em corta-corta, como este artigo, parece um quebra-cabeças mal montado, incomodando o juízo. Mas não é o caso de lamentar – a não ser que alguma Ditadura Vanguardista invente de proclamar o corta-corta como modo preferencial de apresentação gráfica de todos os textos do país – o que espero que nunca aconteça, mesmo conhecendo muito bem o pendor ditatorial de muitos movimentos de vanguarda, que, se pudessem, obrigariam um país inteiro a escrever somente do jeito que eles descobriram ou inventaram.



sexta-feira, 27 de abril de 2012

2855) Drummond: "O Sobrevivente" (27.4.2012)



(Drummond, por Dirceu Veiga)


O Modernismo foi, entre muitas outras, coisas, a crise da poesia lírica, a poesia dedicada à expressão do Eu, posta em xeque pelas enormes transformações sociais no Ocidente no período (digamos) 1850-1918.  O mundo deixou de ser simples, e categorias de pensamento que vigoravam há séculos foram pulverizadas durante a vida dessa geração. O lirismo deixou de ser um cortar-e-colar de expressões infalíveis (“seio palpitante”, “virgem pura”, “beijos apaixonados”, etc.) para absorver um olhar um tanto cínico e cúmplice entre o poeta e a mulher amada.  E não só a mulher amada.  Foi também uma crise lírica entre o poeta e sua Pátria (usava-se muito esta palavra naquela época), sua classe social, os métodos de enriquecimento dos seus antepassados, o próprio planeta.

Em “O sobrevivente”, incluído em Alguma Poesia (1930), Carlos Drummond lança seu brado ironicamente apocalíptico: “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade. / Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia. / O último trovador morreu em 1914. / Tinha um nome de que ninguém lembra mais.”.  CDA devia estar pensando no começo da I Guerra Mundial; curiosamente, quem morreu em 1914 foi o primeiro trovador dos novos tempos (Augusto dos Anjos), da nova visão de mundo, do novo vocabulário, do novo ponto de vista.

O ponto de vista agora é tecnológico, quase de ficção científica: “Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. / Se quer fumar um charuto aperte um botão. / Paletós abotoam-se por eletricidade. / Amor se faz pelo sem fio. / Não precisa estômago para digestão. (...)”  É o fascínio pelo que o século 20 nos prometeu de automatização, de mecanização das tarefas, um mundo dos Jetsons, ecoado por Guimarães Rosa no seu Grande Sertão: “Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?”.

Drummond conclui: “Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. / E se os olhos  reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio. / (Desconfio que escrevi o poema.)”.  O poeta sobrevive ao fim do mundo pré-tecnológico. Sabendo da necessidade de uma nova poesia para esse novo mundo, e se arrisca nessa nova poética onde o máximo que pode se permitir é desconfiar que um poema foi escrito, mesmo que essa desconfiança seja, naquele momento, a única alteração indicada pelo seu barômetro poético.

2854) A primeira vez de uma palavra (26.4.2012)





(Pandemonium, John Martin, 1825)

Um passatempo dos lexicógrafos é rastrear, em documentos antigos, o primeiro uso documentado de uma palavra.  Sabemos, por uma série de deduções, que certa palavra apareceu no século tal, em tal ou tal contexto, mas é preciso ter uma prova (um livro, jornal, etc.) em que ela apareça oficialmente pela primeira vez.  

Claro que depois dessa descoberta pode-se acabar descobrindo que anos antes havia uma “primeira vez” ainda mais primeira do que a outra, mas, paciência, a ciência é assim mesmo.  Se um novo fato incontestável é descoberto, arquiva-se o fato anterior.  A ciência existe para servir os fatos.

O saite Brainpickings, sempre cheio de pequenos fatos curiosos, publica uma série de exemplos do primeiro uso conhecido de palavras hoje banais (na língua inglesa, claro), de acordo com o Oxford English Dictionary

(Nesta coluna, já comentei o livro O Professor e o Demente, que aborda aspectos da criação desse dicionário: http://bit.ly/J1BatV). 

Ficamos sabendo que “anarquia” (“anarchy”) apareceu primeiro em 1539, num texto de Richard Taverner, definida como “a liberdade ou licença ilegal da multidão”. 

A palavra “pandemônio”, hoje tão popular, surgiu nobremente no Paraíso Perdido de John Milton (1667), onde ele se refere a “um solene Conselho a ser realizado no Pandemonium, a nobre Capital de Satã e seus Pares”.

Infelizmente os registros de primeira vez não mencionam a etimologia (a origem da palavra), porque eu gostaria de saber de onde veio “piquenique” (“pic-nic”), mencionada por Lord Chesterfield numa carta a seu filho em 1748.  

Da mesma época (1754) vem a palavra “cookie”, bolinho, que por vias transversas tornou-se tão popular no Brasil através da Internet: “cookies” são pequenos arquivos que são transportados para nosso computador quando entramos num saite, e que facilitam nosso reconhecimento quando vamos lá de novo.

Algumas dessas palavras se devem a autores clássicos: “audaciosamente” (“audaciously”) a Shakespeare (1598), “shopboy” a Jane Austen (1813). 

No caso de Shakespeare, posso imaginar que se trata de uma formação possível na língua (um advérbio a partir de um adjetivo um tanto rebuscado) mas que nesse caso não ocorrera a ninguém. No caso de Austen, era decerto uma palavra corrente na linguagem cotidiana da época, mas sem registro escrito. 

É bom lembrar que o Oxford Dictionary registra apenas o uso impresso mais antigo; raramente a palavra foi criada pelo autor em questão.  Está livre, oral, solta como a luz do sol. 

Quantas décadas uma palavra precisa estar na boca do povo até que um intelectual se atreva a reproduzi-la na página? 



quinta-feira, 26 de abril de 2012

2853) Os 100 anos do “Eu” (25.4.2012)




Em 1912, Augusto dos Anjos, um modesto professor de escolas públicas, pediu uma grana emprestada ao irmão, juntou com algumas economias que vinha guardando, e publicou seu único livro de poemas: Eu

Esse título minúsculo e gigantesco parecia o anúncio de um enorme narcisismo, mas era o contrário disso.  O poeta fala de si, mas sem nada dos suspiros afetivos e dos arroubos emocionais dos sonetos de seus contemporâneos.  A impressão que se tem é que o  Eu do título é o Universo, e o poeta que assina o livro não passa de um simples amanuense escolhido para ser seu porta-voz. A vastidão cósmica de suas imagens lembra Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick.

Augusto dos Anjos é o primeiro poeta de ficção científica do Brasil, e o maior, até hoje.  Seus poemas são tentativas de visualização de milhões de anos de história das espécies vivas, num Cosmos de forças obscuras ao qual ele, num esforço lírico compreensível, procura muitas vezes atribuir uma consciência semelhante à consciência humana. 

Leituras filosóficas e científicas se misturam nos seus versos com uma ambientação urbana repleta de mendigos, prostitutas, cães vadios, tuberculosos, bêbados, urubus.  Entre a nobreza decadente dos engenhos da Zona da Mata e o panorama sombrio e insalubre das cidades que conheceu (João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro) sua poesia mistura influências contraditórias e até hoje únicas em nossa literatura.  

É como ter Olaf Stapledon, o autor de Star Maker, caminhando pelos becos por onde caminharam Lima Barreto e João Antonio.

Augusto não foi imune ao lirismo do seu tempo, aos modismos do seu tempo.  Basta ver suas Poesias Completas para perceber que ele podia ser tão piegas quanto qualquer outro poeta daquele momento. Era capaz do mesmo sentimentalismo açucarado, do mesmo romantismo da-boca-pra-fora, composto de clichês verbais e de sinetas pavlovianas destinadas a emocionar os leitores já familiarizados com elas.  Mas ao recolher uma pequena parte de sua produção para compor o Eu, o poeta acertou em praticamente tudo.  Seu senso crítico lhe indicou com clareza em que pontos era diferente dos seus contemporâneos – e superior a eles. 

Cada poema ali contido é um paralelepípedo de novidade numa balança crítica que só servia para comparar pozinhos de um lirismo homeopático. O único “defeito” do Eu é não poder ter incluído poemas importantes que Augusto escreveu entre 1912 (ano em que o livro saiu) e 1914, ano de sua morte. (Acho que eu teria incluído alguns poemas pré-1912 também, mas é mero detalhe.) 

O que impressiona no único livro de Augusto não é o quanto foi novo quando surgiu, é o quanto ainda é novo cem anos depois.





terça-feira, 24 de abril de 2012

2852) Jão Balaêro (24.4.2012)


 

Cap. 1 – De como Jão Balaêro não nasceu: surgiu no mundo já pronto, aos dez anos, calçando havaianas diferentes, o cós da bermuda na virilha, a camiseta suja com um nome em inglês, um picolé na mão e o balaio na cabeça, e berrando: “Rampali, tantão!”, frase cujo significado ninguém sabia. 

Cap.2 – De como Jão Balaêro cresceu na feira de Campina, chutando laranja chupada, e foi descoberto por um olheiro que o convidou para treinar nas divisões de base do Corinthians. 

Cap. 3 – De como Jão Balaêro viu-se dias depois numa fazenda no sul da Bahia, trabalhando acorrentado, comendo angu com bolacha seca e dormindo numa antiga cocheira de vacas. 

Cap. 4 – De como Jão Balaêro conheceu, entre os trabalhadores, Natan, um sujeito magro, alfabetizado e veemente que lhe ensinou em poucas semanas o que eram os livros, a mais-valia e o coquetel molotov.  

Cap. 5 – De como Jão Balaêro e Natan, aos gritos de “Rampali, tantão!”, mobilizaram 120 trabalhadores exigindo colchonetes, sabão e sopa de legumes, o que resultou em serem todos chicoteados pelos capangas e pendurados de cabeça pra baixo nas árvores uma noite inteira, para exemplo dos demais.  

Cap. 6 – De como, dias depois, caminhões na rodovia próxima recolheram um número incalculável de caroneiros, enquanto no horizonte se elevava um fumaceiro parecido com o da queima de um depósito de algodão, uma casa grande, 35 capangas e um fazendeiro gordo. 

Cap. 7 – De como Jão Balaêro e Natan desembarcaram de um pau-de-arara no Rio e arrumaram emprego numa funilaria. 

Cap. 8 – De como Natan ensinou a Jão Balaêro o que era uma armadura medieval, um robô e um assalto a banco. 

Cap. 9 – De como a polícia frustrou o assalto de dois homens sem documentos vestindo contrafações feitas de folhas de alumínio. 

Cap. 10 – De como a perplexidade da polícia carioca a fez transferir os dois indigitados para o presídio de Ilha Grande. 

Cap. 11 – De como em poucos meses Natan e Jão Balaêro transformaram o presídio, aos gritos de “Rampali, tantão!”, num serpentário trotskysta, onde até os agentes presidiários discutiam acaloradamente sutilezas estratégicas do tratado de Brest-Litovsk. 

Cap. 12 – De como o Alto Comando das Forças Armadas decidiu acabar com a festa, transferindo Jão Balaêro e Natan para um lugar seguro, mas contou com encarniçada resistência dos presos, que resultou em 87 baixas das forças da legalidade e 238 dos amotinados.  

Cap. 13 – De como finalmente Natan foi explodido com uma granada e Jão Balaêro abduzido num helicóptero da Marinha, onde foi amarrado num saco e jogado no Oceano Atlântico, onde submergiu gritando algo que soou como “Glugluglub, glub-glub!”.


domingo, 22 de abril de 2012

2851) Os fracos não têm vez (22.4.2012)


O romance de Cormac MacCarthy e o filme dos irmãos Coen têm o mesmo título, No Country for Old Men, que foi traduzido aqui como Onde os Fracos Não Têm Vez. É uma citação ao poema “Sailing to Byzantium”, de William Butler Yeats.  O poema do irlandês conta a ânsia de viagem de um homem maduro para longe do país em que vive, um país voltado para os jovens e os deleites da vida. O homem quer ir para Bizâncio e entregar-se a atividades de natureza mais espiritual.  No filme e no livro os indivíduos mais velhos estão diante de atos de violência de uma proporção que lhes parece espantosa, e se queixam (principalmente nas sequências em que aparece o xerife Bell, interpretado por Tommy Lee Jones) de que “os jovens hoje fazem o que bem entendem, e o mundo está perdido”.

Na verdade a culpa nem é dos jovens, a menos que vejamos neles um mercado significativo para as drogas que desencadeiam a verdadeira matança que ocorre ao longo da narrativa. O enredo é uma variante do argumento “Sujeito Descolado Põe as Mãos Sem Querer Numa Fortuna Que Pertence a Gente Braba”.  Daí em diante, a narrativa vai se transformar num jogo de gato e rato onde os gatos são muitos e o rato é um só.  Llewellyn Moss (Josh Brolin) é um ex-veterano do Vietnam cheio de pequenos truques e que sabe usar uma arma, mas além da polícia e dos traficantes ele está sendo caçado por Anton Chigurh (Javier Bardem), um dos vilões mais imprevisíveis e filosóficos que a literatura e o cinema nos deram nos últimos tempos. Chigurh mata por crueldade, mas mata também por algum tipo de missão cósmica que não entendemos bem, mas que parece guiar suas decisões muitas vezes surpreendentes.

Há um diálogo emblemático no filme, quando um xerife idoso diz: “Alguém iria imaginar que um dia, nas ruas do Texas, passariam rapazes com cabelo verde e um osso enfiado no nariz?  E alguém iria imaginar que seriam nossos filhos?”. Os tempos estão mudando. O livro de MacCarthy é uma reflexão sobre a enorme importância da droga dentro de nossa sociedade.  A droga que leva homens a se fuzilarem uns aos outros, a sangue frio, numa chacina progressiva que dura semanas e atravessa várias cidades.  Alguém dirá que estão se matando por dinheiro; mas a droga é um dos meios mais baratos para produzir dinheiro fácil.  É um dos negócios mais lucrativos, em termos do quanto se investe.  A droga significa Prazer para uns e Dinheiro para outros.  Enquanto o Prazer e o Dinheiro forem o objetivo de tudo que fazemos, a sociedade não se livrará da droga. E daqui a algumas décadas em nenhum país existirão pessoas velhas. Todo mundo morrerá cedo – por causa da droga, do prazer e do dinheiro.

sábado, 21 de abril de 2012

2850) Temple Grandin (21.4.2012)




Temple Grandin é uma mulher autista, e tem 64 anos.  Na infância teve professores especiais, mas depois estudou em escolas de crianças normais.  Como se sabe, crianças “normais” não perdoam crianças que sejam um pouquinho diferentes delas. Quando percebem que Fulano é “estranho”, elas mangam, zoam, perseguem, às vezes dão porrada.  Temple Grandin diz hoje que tinha dificuldade em entender a razão daquilo: “Eu pensava que todo mundo pensava igual a mim, e não entendia por que eles me tratavam daquele jeito”.  Todo autista é uma pessoa completa, e toda pessoa é diferente.  Quando alguém tem uma condição especial como autismo, isso é apenas 10 ou 20%, e os outros 80 ou 90% dela são tão imprevisíveis quanto os de qualquer pessoa.  Nenhum ser humano pode ser definido exclusivamente em função de alguma condição especial que possua, seja ela qual for.

Temple estudou Psicologia e tornou-se uma defensora dos “direitos humanos dos animais”, se bem me exprimo.  Planejou fazendas, currais e matadouros menos estressantes para o gado. Mesmo reconhecendo a necessidade do sacrifício do gado para nos alimentar, ela resume sua reivindicação para eles em “uma vida digna e uma morte indolor”.  Incapaz de sentir emoções, como muitos autistas, ela mesmo assim fez muito mais pelos bichos do que muita gente que se comove com a tragédia deles mas não move uma palha em seu favor (eu, por exemplo).

Aqui está uma palestra dela (com legendas em português: http://bit.ly/HLYZQs), “O mundo necessita de todos os tipos de mentes”. É uma mulherona grisalha, com camisa florida de cowboy, um jeito meio masculino. Vi-a pela primeira vez anos atrás, num documentário da TV que mostrava uma engenhoca bizarra que ela construiu, a “máquina do abraço”, uma coisa feita de traves de madeira, roldanas e tudo mais. Ela entrava naquela estrutura, movia controles, e as partes de madeira pressionavam partes diferentes das costas, das pernas e dos braços dela, produzindo-lhe “uma indescritível sensação de bem estar”. Deve ser o que as crianças normais sentem quando são abraçadas e acarinhadas pelos pais.  O fato de Temple ter precisado inventar uma trapizonga mecânica para obter esse efeito mostra, como diria Drummond, que “cada pessoa é diferente e somos todos iguais”. 

Os autistas se fixam em pequenas obsessões, diz ela: animais, automóveis, livros. Pode-se usar essas obsessões para lhes ensinar matemática, desenho, história, etc.  Infelizmente nosso ensino não é (nem tem como ser) personalizado. Existe um conjunto de fórmulas que todos devem assimilar até a graduação e o diploma. Quando os autistas forem maioria (estão aumentando!), talvez isso mude.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

2849) Rehab (20.4.2012)



O café da manhã seria o melhor momento do dia, se não fosse pelo café da manhã. Piada recorrente aqui na clínica. Gostamos do ambiente claro, acolhedor; gostamos de ver, na TV do refeitório, as reprises de I Love Lucy ou A Ilha da Fantasia. (Todas as TVs são ligadas num mesmo canal, para estimular a socialização e a troca de idéias). 

Gostamos do zum-zum-zum, do tilintar de pratos e talheres. Só não gostamos da comida. Não tem sabor nenhum, o que ressalta a textura repugnante de algumas delas. O Duque de Hagen comentou ontem comigo: “Mastigamos estas coisas insípidas e sem cheiro em busca de sofrimento. Só alimentam a ilusão de que nos fazem bem”.

Piscina com água pela cintura, olhares vigilantes dos salvavidas. Baralho ou gamão no Espaço Convivencial. Mme. Tepes, como sempre, passeia no jardim sem guarda-sol, rosto erguido; perdida em alguma viagem épica, triunfante. Eu caminho ao seu lado, ouço histórias suas de épocas passadas, mas todas pasteurizadas, irrepreensíveis. Com a idade que tem, não cansa de dizer que vive em função do futuro.

Hoje não recebi diálise, só as injeções e o rebatismo. Depois, caminhei em volta da clínica, que tem para isso uma pista larga, arborizada. Caminhar me faz bem, e é apenas nestes momentos que sinto algo próximo ao arrebatamento de quem se joga sem medo num abismo, de quem voa por sobre as nuvens guiado pela lua. 

O moleton está encharcado quando o dispo no banheiro; um chuveiro frio; uma roupa leve; e o detestável almoço, onde é ainda maior a quantidade de coisas pastosas que é preciso engolir, de coisas ásperas e úmidas que é preciso desfazer com os dentes.

Minha tardes são sempre melancólicas; costumo me alegrar com a companhia do Signor Polidori, sempre bem-humorado, com duas ou três anedotas picantes na ponta da língua. E quando a noite começa a cair e os enfermeiros nos conduzem para o prédio principal, tem início a parte terrível do meu dia, do dia meu e de todos. 

Trancafiados em nossos quartos, com portas e janelas protegidas, câmaras de vigilância piscando mecanicamente seu olho vermelho, entretemo-nos em ler A Bíblia na Linguagem de Hoje, revistas de modas ou de vida social. Uns assistem vídeos de Papai sabe tudo ou de Os pioneiros. Outros escutam MP3 de Pat Boone ou de Brenda Lee. 

Alegria e conforto são as palavras de ordem nessa noite interminável que se inicia e que todos nós temos que atravessar. A noite que agora precisamos temer e abominar, sem lembrar o tempo em que éramos seus imperadores, em que o mundo se estendia imenso por baixo de nossas asas abertas, e o prazer da vida borbulhava quente e saboroso por entre os nossos caninos.






quinta-feira, 19 de abril de 2012

2848) Millôr Fernandes (19.4.2012)



Não conheci Millôr pessoalmente. No lançamento de um livro, há quase 20 anos, num salão repleto de gente, vi-o a cinco passos de distância, conversando com alguém. Poderia ter ido até lá e dito a bobagem de sempre, “sou seu fã desde pequenininho”, a que ele responderia com bom humor e atenção, como me parece que era seu jeito. Paciência. Um autor tem vida própria, tem sua família, seus amigos. E tem seus leitores, que são uma espécie de amigos virtuais: nunca conviverão com ele, nunca tomarão um cafezinho na esquina ou um chope na calçada, nunca compartilharão confidências pessoais, nunca telefonarão um para o outro quando estiverem precisando trocar idéias ou reclamar da vida. Paciência; a vida é assim, não adianta reclamar.

Cresci numa época em que a revista O Cruzeiro era uma espécie de Fantástico, o Show da Vida impresso, que levávamos uma semana saboreando. Eu lia as reportagens sobre futebol, crimes e discos voadores; e lia as seções de humor, o Pif-Paf de Millôr, o Amigo da Onça de Péricles, a página de Carlos Estêvão, os cartuns de Appe ou Borjalo. Millôr saiu da revista brigado, por causa da sátira “A Verdadeira História do Paraíso”, que desagradou a Igreja. Fundou seu próprio Pif-Paf, depois entrou no Pasquim, tornou-se uma figura onipresente na minha vida adulta. Por causa dele conheci a obra de Steinberg, e a palavra “cartum” virou uma forma de arte. Li quase todas suas peças de teatro, a começar pela colagem Liberdade, Liberdade com Flávio Rangel (um dos mais célebres espetáculos anti-ditadura), e depois É..., Um elefante no caos, Os órfãos de Jânio, Computa, computador, computa!... Millôr era uma espécie de Bernard Shaw carioca. Seu teatro era engraçado, profundamente crítico, e cheio de teorizações sobre o Brasil e o mundo.

Foi o maior fazedor de frases do Brasil? Difícil dizer, porque este é um dos talentos mais espontâneos e viscerais do nosso povo. Mas mesmo nesta concorrência acirrada Millôr poderia reivindicar o título pelo mero fator quantidade (basta folhear A Bíblia do Caos). Era um agnóstico tranquilo e um individualista renitente. Brigava pelo direito de não usar cinto de segurança, o que me parece idiota na prática mas compreensível como atitude ideológica (“quem manda em mim sou eu, não o Estado”). Tinha uma independência de espírito que muitos intelectuais também poderiam ter, se para isso não fosse preciso ter a coragem de passar a vida batendo com a cabeça nas paredes e dando murros em pontas de faca. Millôr fez isso até o fim, e, pelo menos daqui de onde enxergo, as paredes e as facas nunca mais tiveram o mesmo poder sobre seus leitores virtuais.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

2847) No pé da página (18.4.2012)




Houve um tempo em que os livros eram copiados a mão nos mosteiros, em folhas de pergaminho. Obras importantes eram passadas a limpo por escribas hábeis, com caligrafias meticulosas que, vistas hoje, parecem ter sido impressas com tipos móveis, pela sua regularidade, harmonia e clareza. Ser escriba medieval exigia, além da caligrafia perfeita, boa cultura (para não cometer erros de grafia, e para poder eventualmente corrigir os erros da cópia que estava servindo de modelo), paciência e resistência física; porque em geral o escriba tinha que passar o dia inteiro debruçado sobre uma mesa, molhando a pena no tinteiro e desenhando letras após letras, hora após horas, dia após dia, ano após ano. Não era um serviço para qualquer um; e pelo menos uma grande obra literária, O Nome da Rosa de Umberto Eco, fez justiça a esses operários do saber, de um mundo que não existe mais.

O número da primavera da revista Lapham’s Quarterly (http://bit.ly/GDbCwa) traz uma matéria sobre o lado emocional desses artesãos anônimos: os comentários que eles deixavam anotados nas margens ou no cólofon das obras que copiavam. Ninguém é de ferro, não é mesmo? Esses monges de 800 anos atrás também não eram, e deixavam rabiscados, aqui e ali, seus pequenos protestos. “Estou com muito frio”, anota um. “Esta é uma página difícil dá muito trabalho para ser lida”, anota outro, lembrando-nos que estas cópias impecáveis eram muitas vezes feitas a partir de manuscritos muito velhos, danificados, com trechos arrancados ou ilegíveis. Alguns se queixam de pequenos problemas técnicos: “O pergaminho é peludo”, “A tinta é rala”, “Pergaminho novo, tinta rala, e não digo mais nada”. Alguns fazem uma autocrítica: “Esta página não foi escrita muito devagar”.

Mais comovente são os desabafos mais longos, que expressam bem o sentimento provocado por esse trabalho estafante: “Agora acabei tudo, pelo amor de Deus me deem algo para beber”. “São Patrick de Armagh, libertai-me do ofício de escrever”. “A escrita é um trabalho enfadonho. Ela enverga nossas costas, cansa nossa visão, torce o nosso ventre e as nossas ilhargas”. “Eu estava gelado enquanto escrevia, e o que não pude copiar aos raios do sol terminei à luz de velas”. “Assim como a visão do porto é bem vinda ao marinheiro, a da última linha o é para o escriba”. “Isto é tão triste! Oh, pequenino livro. Chegará um dia em que alguém lerá esta página e dirá: A mão que a escreveu não existe mais”. São pequenas queixas de homens anônimos que humanizam essas obras centenárias. É como encontrar na argamassa de uma catedral a marca de uma mão ou de dois joelhos humanos.

terça-feira, 17 de abril de 2012

2846) Bob Dylan no Rio (17.4.2012)



(Dylan em Copacabana. Foto: Nana Tucci)

Não fui ver Dylan no Citibank Hall. É a quinta vez que ele canta na cidade, e vi todas as outras quatro. Pra que ver mais? Dylan é uma espécie de Ronaldinho Gaúcho: a gente não vai assistir pensando no que ele pode fazer, mas para agradecer o que ele já fez. Isso não impede nenhum dos dois de eventualmente produzir algo genial. Os monstros sagrados nunca morrem de todo. Quando menos se espera, as cinzas começam a se juntar sem que nenhum vento esteja soprando.

Dylan cantou no Rio pela primeira vez em janeiro de 1990, na Apoteose. Abriu o show com “Subterranean Homesick Blues”. Eu estava no gargarejo, e o cara que ajeitou o pedestal do microfone dele era mais alto do que eu. Dylan tem 1,65m. Cantou a primeira estrofe inteira de guitarra em punho, para um microfone apontado para sua testa (no fim da estrofe, ajeitou rapidinho). O show foi uma mistura de gente emocionada e gente reclamando. No meio de “Hattie Carroll” estourou uma briga perto de onde eu estava, ele cantou a música inteira olhando para os brigões.

Em agosto de 91, ele cantou no extinto Imperator, no Méier. Um show fechado, acolhedor. A certa altura faltou energia na casa inteira. O baterista fez um longo improviso acompanhado com palmas pela platéia. Em 1998, ele abriu o show dos Rolling Stones, novamente na Apoteose. “Apoteose” é um eufemismo para a cena em que, no show da banda principal, ele voltou ao palco para cantar “Like a Rolling Stone”. Na turma que foi a este show estava minha filha Maria, então com 20 anos. O quarto show de Dylan aqui foi na Arena Multiuso, em março de 2008 (ver: http://bit.ly/HL8N0L). Fui com meu filho Gabriel, então com quase 16 anos. Dylan abriu o show com “Rainy Day Women # 12 e 35”, levantando a platéia, cantou razoavelmente bem algumas músicas, o tempo todo em pé, num tecladinho.

Por que não fui agora, além do preço? Não sei. Ano passado vi Milo Manara aqui no Rio, autografando quadrinhos. Vinte anos atrás eu passaria uma madrugada sob a chuva para pegar um autógrafo dele. Desta vez, esnobei. Não, não esnobei ele, nem Dylan, nem qualquer outro. Esnobei a necessidade de guardar uma prova palpável de que por alguns minutos compartilhamos as mesmas coordenadas espaçotemporais. Dizem que com a idade a gente vai ficando mais indiferente às pequenas coisas; já ouvi alguém dizer que velho não guarda lembrancinhas porque não vai ter muito tempo para lembrar. Eu diria que a idade torna meio irrelevantes esses rituais. O mundo é dos jovens. Pessoas como eu e Dylan estamos por aqui curtindo a música da festa, a inebriação do vinho; mas na verdade já estamos na calçada, esperando o táxi.

domingo, 15 de abril de 2012

2845) Evolução dos games (15.4.3012)



(The Elder Scrolls V: Skyrim)

Quando Thomas Edison inventou o fonógrafo, não pensou que aquilo serviria futuramente para vender canções para bilhões de pessoas. Achava que a máquina ajudaria no estudo de línguas estrangeiras. Quando os irmãos Lumière inventaram o cinema, acharam que era uma “invenção sem futuro”, e foi preciso o gênio de Georges Méliès (homenageado agora com o belo filme A invenção de Hugo Cabret) para descobrir o potencial de narração e de fantasia daquelas imagens em movimento. Alguma coisa parecida (numa escala diferente, e de mistura com outras variáveis) está ocorrendo com os videogames nestas décadas iniciais de seu desenvolvimento. O avanço técnico dos gráficos e da jogabilidade está sendo muito mais rápido do que o dos aspectos (digamos) dramatúrgicos e literários.

No seu livro Extra Lives (2010), Tom Bissell afirma: “Games são produtos de entretenimento corporativo, criados por dúzias de pessoas, com uma grande expectativa de ganhar dinheiro. Eles têm mais inteligência formal ou estilística do que são capazes de utilizar; e não têm nem um traço de inteligência temática, emocional ou moral”. O julgamento é duro, mas como é feito por um sujeito que se confessa viciado em games, talvez não seja preconceituoso. Bissel justifica esse desenvolvimento defeituoso com uma razão principal: “Um número desproporcional de designers de games hoje em atividade vem de um background de sistemas, programação ou engenharia, o que contribuiu para formar suas personalidades e interesses. Uma consequência disto é que os designers imaginam os games de dentro para fora: Que variável posso inserir no sistema para produzir um efeito interessante?”.

Ou seja: os games não foram inventados por artistas, mas por técnicos. Quem os criou estava tentando reproduzir o movimento de corpos num espaço tridimensional através de pontos luminosos. Eu sou dos primórdios dos games de computador (raramente joguei games de console, tipo PlayStation ou Xbox). No tempo dos computadores pré-Windows, usei joguinhos em que os personagens eram representados por letras maiúsculas, os muros da prisão eram uma série de XXXX maiúsculos, a jóia que eles procuravam roubar era um asterisco, e assim por diante, tudo isso em letras verdes sobre fundo preto. Ou seja, “mó toskera”, como diriam os jovens de hoje. Desse mundo para o de Mass Effect 3, vai uma distância que foi coberta em vinte anos. Diz Bissell: “A indústria dos games, que começou com uma cultura de engenheiros, transformou-se num negócio, e agora, como um milionário talentoso que se volta para a poesia, está cheia de aspirações confiantes, mas inseguras, de se transformar numa arte”.

sábado, 14 de abril de 2012

2844) Reescrever um livro (14.4.2012)



(Neil Gaiman, por Mizzy Chan)

Grande parte das carreiras literárias são resultado de uma experiência inesquecível de leitura que faz alguém pensar: “Quero escrever assim também”. Ninguém começa a escrever sem ter lido algo que o emocionou, que lhe deu uma nova maneira de pensar, de ver as coisas. Jean-Paul Sartre, na infância, copiava à mão romances de aventuras, trocando os nomes dos personagens e algumas peripécias, e os assinava com seu próprio nome. August Derleth era um fã tão ardoroso das histórias de Sherlock Holmes que inventou um detetive praticamente idêntico, mas para poder publicar as histórias trocou o nome do personagem para Solar Pons. Outras vezes, a motivação pode vir de um livro ruim. Diz-se que Fenimore Cooper trabalhava como marinheiro e um dia, numa daquelas longas esperas a que os marinheiros são submetidos, estava lendo um livro de aventuras. A certa altura jogou-o para um lado dizendo: “Que coisa idiota, até eu seria capaz de escrever um livro melhor do que este”. Os amigos riram dele, fizeram algumas apostas, e Cooper escreveu O Último dos Moicanos.

Neil Gaiman, o autor de Sandman, falou numa palestra sobre a impressão que lhe causou a leitura de O Senhor dos Anéis de Tolkien. Totalmente arrebatado pela obra, diz ele, “cheguei à conclusão de que O Senhor dos Anéis era, provavelmente, o melhor livro que poderia ser escrito, o que me colocou numa espécie de sinuca. Eu queria ser um escritor quando crescesse. Não, não é verdade: eu queria ser um escritor naquele momento exato. E eu queria escrever O Senhor dos Anéis. O problema é que ele já tinha sido escrito”. Esse tipo de entusiasmo é resolvido, hoje, pela existência do que chamamos “fan fiction”, histórias escritas pelos fãs utilizando o universo e os personagens de uma obra que admiram. Prolongamentos, extensões amadorísticas de uma obra profissional em sua origem. É uma atividade ironizada por muita gente, mas que acho positiva, porque ajuda o jovem fã a treinar sua mão dentro de um contexto dramatúrgico que ele já conhece bem e onde sabe se movimentar.

Depois da fan fiction, entretanto, pode surgir a literatura profissional. Neil Gaiman não reescreveu Lord of the Rings, em compensação criou a série Sandman de quadrinhos e uma porção de ótimos romances, como Neverwhere, American Gods, The Graveyard Book. Será que são tão bons e tão historicamente importantes quanto obra de Tolkien? Não importa: são os livros de Gaiman, os livros que ele tirou de sua própria imaginação e de sua memória afetiva, livros modernos ambientados em Londres, nos EUA, em cidadezinhas imaginárias... Livros que Tolkien não poderia ter escrito.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

2843) Obsolescência (13.4.2012)



Uma página interessante faz uma avaliação do grau de obsolescência de vários tipos de controles e consoles para games, desde os mais antigos. Christian Sandvig (http://bit.ly/Iu8p6J) é professor de “Tecnologias da Comunicação e Sociedade” na Universidade de Illinois, e comenta: “Minhas tecnologias tornaram-se obsoletas, em sua esmagadora maioria, devido a avanços tecnológicos ou a defeitos. Além disso, algumas se tornaram obsoletas devido ao aparecimento de produtos mais atraentes injetados no mercado pela cultura de consumo intenso cada vez mais presente nos EUA. Concordo com quem diz que as tecnologias estão sendo substituídas muito antes de se tornarem de fato obsoletas. Um bom exemplo disso é quando Slade diz que telefones celulares fabricados para durar cinco anos estão sendo descartados depois de dezoito meses”.

Pode-se “tomar o pulso” do descontrole industrial de uma civilização quanto ela vai na direção de um destes extremos: 1) ser incapaz de substituir produtos obsoletos por produtos novos que cumpram bem a função; 2) aposentar cedo demais produtos ainda válidos, simplesmente para convencer o consumidor a comprar um produto novo do qual ele, na verdade, ainda não precisa. No primeiro caso, a economia vai mal porque está lenta, preguiçosa, recessiva, ou então não tem o know-how necessário para resolver seus próprios problemas. No segundo caso, está acelerada demais, como uma pessoa que tomou estimulantes em excesso e perdeu a capacidade de administrar direito o que faz.

Diz Sandvig: “As empresas que produzem eletrônicos deviam ser obrigadas pelo governo a oferecer algum tipo de subsídio para motivar e ajudar o comércio num plano de recolhimento e reciclagem do lixo eletrônico. Até mesmo o consumidor poderia ganhar um pequeno desconto na compra de um equipamento novo se trouxesse o equipamento velho e o devolvesse. Isto manteria o fluxo da inovação tecnológica, diminuiria o lixo eletrônico, e manteria satisfeitos os consumidores”. É um ponto de vista correto, mas parece mais próprio da sociedade norte-americana. Aqui no Brasil, pela minha experiência, um eletrônico só vai pro lixo quando já deu tudo que tinha que dar. Televisão, celular, notebook, monitor de PC , tudo isso é repassado para outra pessoa (filho, pais idosos, amigo, empregada, porteiro do prédio) quando a gente compra um novo. A obsolescência é gradual – quando a gente está com mais grana, compra um modelo novo, e repassa o antigo para quem não pode comprar. A ida pro lixo não é imediata, é o fim de uma longa cadeia de presentes ou de transações informais, numa sociedade de classes mais próximas e mais permeáveis.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

2842) 500 contos de fadas (12.4.2012)



A literatura oral é um sambaqui de narrativas despedaçadas e sepultadas juntas. A maior parte da literatura oral que conhecemos hoje em dia é, ironicamente, literatura-oral-por-escrito: as coletâneas dos Irmãos Grimm, de Sílvio Romero, de Câmara Cascudo, etc. Ninguém mais conta histórias em casa. Quem conta é a televisão, cujo encanto não discuto; e já existe a profissão de contador de histórias com cobrança de ingresso. É uma oralidade diferente daquela dos tempos dos Irmãos Grimm.

Por falar neles, foi descoberto na Alemanha o arquivo de um historiador amigo deles, Franz Xaver vom Schönwerth (1810-1886), que dedicou-se, naquela mesma época, a escutar e copiar histórias narradas à viva voz por camponeses, trabalhadores, pessoas idosas. Seus trabalhos foram publicados em três livros saídos em 1857, 1858 e 1859, mas não obtiveram a mesma repercussão dos livros dos Grimm, e logo foram esquecidos. Agora, uma pesquisadora, Erika Eichenseer, deu uma geral nos arquivos dele e encontrou cerca de 500 contos orais por ele transcritos, muitos dos quais jamais registrados em outras coletâneas.

Muita gente se pergunta: quem cria os contos de fadas? É o mesmo que perguntar: quem inventa as anedotas? Dificilmente vemos uma anedota ser atribuída a alguém – não me refiro a episódios pitorescos da vida real, mas às piadas de português, de bêbado, de papagaio, etc.; o feijão com arroz da mesa de botequim. Quem inventa essas piadas, e quem inventa contos populares como Chapeuzinho Vermelho ou Rapunzel? Já vi artigos bastante sérios discutindo se esses contos orais tinham “origem erudita” (eram inventados por escritores cultos e depois propagados pelo povão) ou “origem popular” (eram inventados pelo povão e depois propagados pelos escritores cultos). É uma dicotomia típica de quem divide a humanidade em eruditos e populares. Eu divido a humanidade em pessoas com talento fabulatório (capazes de criar histórias) e pessoas sem talento para inventá-las, mas que gostam de ouvi-las e repeti-las. Em qualquer classe social encontramos esses dois tipos.

Saber inventar histórias não é efeito colateral de ser pobre nem de ser rico, é algo que depende de outros fatores. Sugiro a leitura do longo prefácio de Ítalo Calvino para suas Fábulas Italianas, onde ele confessa na maior cara-de-pau que, após registrar algumas variantes de um conto popular, decidiu mudar o final por conta própria porque achava que assim ficava melhor. Atitude não de erudito, mas de fabulador. Quem inventa as histórias? Gente como Ítalo Calvino, amas-de-leite, professoras de italiano, sapateiros... Fabuladores, de todas as classes sociais.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

2841) Dinheiro é droga (11.4.2012)




O Capitalismo começa como uma espécie de realismo pragmático, mas depois de um certo ponto degenera em delírio quantitativo. 

No começo, ele é materialista até a medula. Escarnece da religião, faz pouco das ideologias, torce o nariz para a arte, dá um chega-pra-lá em todos os subjetivismos e diz que no mundo somente as coisas materiais contam. Só conta o que dá resultado, o que gera riqueza, o que produz. 

É nessa fase, por exemplo, que as manifestações artísticas são enxotadas para o sótão dos “Passatempos Para Gente Desocupada”. Por que perder tempo com coisas que provocam apenas prazer estético e enriquecimento espiritual? Já que ninguém pode quantificar prazer estético, ninguém pode lucrar planejadamente com ele. Quanto ao enriquecimento espiritual, pra começo de conversa não existe essa coisa chamada espírito.

Na sua fase produtiva, o capitalismo impõe um culto à produção, à matéria, às transformações das matérias primas em produtos. Esse culto é tão forte que contaminou o próprio comunismo, em suas tentativas falhadas de substituir o adversário. Estatizando o Capital e glorificando o Trabalho, o comunismo perpetuou e ampliou as ladainhas à máquina, à indústria, à produtividade, à transformação da natureza. 

Materialista por definição, o comunismo foi, neste aspecto, uma mutação avançada do capitalismo. Só existe o que é “material”.

O que destruiu o capitalismo e vai destruir o mundo (não se enganem) é o estágio seguinte, em que a Matéria cede lugar ao Símbolo. 

O capitalismo deixa de ser concreto e passa a ser abstrato. Já não conta mais quantas moedas de ouro você possui, e sim quantos zeros você acumula em suas contas bancárias. 

O Capitalismo Financeiro sucedeu ao Capitalismo Produtivo e começou a tirar milhões de coelhos virtuais de dentro da inesgotável cartola das manipulações bancárias. É irônico que um sistema de pensamento tão voltado para o que é sólido tenha se desmanchado no ar com tanta facilidade; e que as “águas glaciais do cálculo egoísta” tenham se evaporado nessa neblina impalpável, nessa nuvem dos trilhões de dólares inexistentes que são negociados todos os dias nos mercados mundiais. 

Trilhões de zeros que bancos, empresas e países vendem, compram, revendem, emprestam, dividem, partilham, multiplicam, como se esses zeros todos valessem alguma coisa, como se existisse algum lastro produtivo (ouro, prata, grãos, capim, sei lá, qualquer coisa que servisse para algo no mundo real). 

O Capitalismo embebedou-se de Capital, passou a se alimentar não de produção mas de ficções financeiras, como um drogado que deixa de comer e de beber água, para poder continuar se drogando.





2840) Detetives psíquicos (10.4.2012)



(At the European Concert, Seurat, 1887-1888)

A paranormalidade é uma zona crepuscular entre a ciência e as doutrinas espiritualistas. Envolve uma quantidade enorme de fatos extraordinários (telepatia, precognição, psicometria, clarividência, etc.), para os quais a ciência ainda não tem explicação. As doutrinas espiritualistas os explicam com a sua hipótese padrão, a de que os seres humanos possuem uma alma que sobrevive à morte do corpo físico e é capaz de se comunicar com os vivos, em circunstâncias especiais. Os dois grupos trabalham com critérios e parâmetros diferentes, e cada um recusa os parâmetros do outro. É como aquela discussão entre um cosmólogo e um bispo, em que o cosmólogo se queixou de que ninguém era capaz de provar cientificamente a existência de Deus. O bispo retrucou que ninguém conseguira provar teologicamente a existência do Universo. (Talvez o bispo não estivesse bem informado, porque me parece que muitos dos filósofos cristãos aceitam, sim, a existência do Universo – se bem que como um efeito colateral da existência de Deus.)

Teorias à parte, o que existe é um impressionante acúmulo de fatos paranormais. Como não há explicação científica para eles, muitos cientistas tentam desqualificá-los com acusações de charlatanismo, auto-sugestão, alucinação, coincidências, histórias mal contadas, testemunhas não confiáveis, etc. Colin Wilson é um dos mais dedicados pesquisadores desses fatos, conhecido dos leitores brasileiros, nessa área, pelo ótimo O Oculto (Ed. Francisco Alves). Estive relendo The Psychic Detectives (1984), em que ele examina a paranormalidade em geral e depois se concentra na atividade dos detetives psíquicos, indivíduos a quem a polícia recorre quando não consegue elucidar um crime ou localizar uma pessoa desaparecida. Esses “psíquicos” (a palavra em português é apenas adjetivo, mas em inglês é usada também como substantivo, designando a pessoa que tem essa capacidade) são capazes de “ver” flashes do crime apenas pegando numa peça de roupa, numa fotografia, num papel manuscrito ou em qualquer objeto que tenha estado em contato com ela. Às vezes basta-lhes olhar um mapa para indicar com precisão o local do crime ou o local onde a vítima foi oculta.

Wilson compara esses psíquicos a concertistas musicais, e diz: “Esse nível de habilidade é mantido por uma prática constante, esforço constante; até mesmo um grande pianista sabe que precisa praticar várias horas por dia. Uma das razões pelas quais os psíquicos são muito mais erráticos do que os pianistas é, sem dúvida, que eles tendem a ser preguiçosos a respeito do seu dom, aceitando-o como algo natural, que não precisa ser desenvolvido”.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

2839) Ching e Kong (8.4.2012)



(Liou Seng-Sen e Liou Tang-Sen, 1903)

Irmãos siameses, unidos por uma faixa abdominal. Quando tinham seis meses de idade deram entrada no Centro Cirúrgico do Hospital Central de Beijin para serem separados (a ciência da época já dominava essa técnica). Os médicos não conseguiram, porque os gêmeos resistiram a doses elefantinas de anestésico, permaneceram acordados, e pulavam tanto que os médicos acharam mais prudente adiar a cirurgia. Quando completaram um ano, foi feita nova tentativa, mas uma médica começou a chorar quando viu os dois (mais uma vez despertíssimos, depois de litros de Nembutal) abraçarem-se um ao outro, fazendo que “não” com a cabeça. Os pais (que planejavam doar um e ficar com outro) tiveram que se resignar, mas a essa altura uma estação de TV já estava comprando a briga e criou um reality show baseado na dupla.

Uma bateria de testes revelou aos cientistas algo que os pais já tinham percebido, ou seja, que os meninos eram anormalmente inteligentes, sendo que Ching era metódico, paciente, com aptidão para as matemáticas, e Kong era um capeta indomesticável (tinha sido ele o escolhido para doação). Quando começaram a andar, era Kong quem arrastava o irmão para as travessuras e pequenas surtidas de vandalismo doméstico, e era Ching que depois relatava tudo aos pais, mesmo sofrendo beliscões e cusparadas. Tornaram-se adolescentes por entre bebedeiras e meditações zen. Só namoravam garotas grandalhonas, uma de cada vez (achavam obsceno sair com duas). Câmaras os acompanhavam à distância (Kong não gostava delas e especializou-se em alvejá-las com bodoques, e depois com armas de ar comprimido). Não frequentaram escolas; uma multinacional custeou seus estudos. Eram imprevisíveis: nas aulas de literatura Ching dedicava-se aos Surrealismo e à poesia beat, e Kong logo tornou-se um expert em Emily Dickinson.

Aos 31 anos apaixonaram-se pela Dra. Musatra, uma bióloga da Nova Guiné que criou uma ONG apenas para estudá-los. A doutora percebeu que com o passar dos anos a faixa abdominal que os unia estava se tornando mais curta, o que ameaçava a vida dos dois. Numa manobra audaciosa ela os raptou do Hospital Central de Beijin, onde viviam até então. Passaram-se dois anos de buscas e investigações até que a Dra. Musatra foi localizada, sob nome falso, num centro médico de Durban. Ali, ela apresentou seu marido Chong, e provas irrefutáveis (com copioso material audiovisual) de que nos dois últimos anos os dois irmãos tinham se fundido um ao outro, transformando-se numa única pessoa. A comunidade científica rejeitou as provas irrefutáveis, pôs o casal em prisão domiciliar e procura até hoje os irmãos desaparecidos.

sábado, 7 de abril de 2012

2838) Habilidades obsoletas (7.4.2012)

Este saite, Obsoleteskills.com (http://obsoleteskills.com/skills/skills), é uma simples lista de habilidades que desapareceram ou estão em vias de desaparecer do nosso mundo, em geral por causa da substituição de uma tecnologia por outra mais nova. 

A lista é longa e heterogênea, e mistura desde alguns herméticos segredos de processamento de dados ou de programação de computadores, envolvendo sistemas ou linguagens que não se usam mais, até bobagens cotidianas. Mas são muito úteis, por exemplo, para quem quer escrever um conto ou romance ambientado 10 ou 20 anos atrás. 

Tendemos a esquecer (ou no caso dos mais jovens, a não saber) como se faziam tais e tais coisas naquele tempo. Um leitor ou crítico mais perspicaz pode captar num segundo esses anacronismos ou erros de continuidade, cada vez mais numerosos num mundo que muda depressa. 

Cada item tem uma ficha onde se registram os seguintes aspectos: Área (ciência, arte, moda, etc.); Época em que se tornou obsoleto; Tornado obsoleto por (a tecnologia que o suplantou); Conhecimentos requeridos; Em que situações era útil; e em seguida comentários. 

Algumas habilidades estão mesmo em desuso, e sugiro ver os itens “Mumificação”, “Caçar um Mamute Peludo”, “Pintar paredes de caverna”, etc. Mas outros fizeram parte da minha vida: “Hifenizar palavras e justificar a margem direita ao datilografar”, “Preencher cartões no arquivo de uma biblioteca”, “Encher uma caneta no tinteiro”, “Ajustar o horizontal e o vertical de um aparelho de TV”, “Rebobinar o filme ao devolvê-lo na locadora”, “Datilografar ponto de exclamação” (digitava-se um apóstrofo, dava-se o retrocesso, e digitava-se um ponto embaixo dele), “Usar uma esferográfica para rodar fita cassete frouxa antes de pôr pra tocar”... 

Aos poucos estamos entrando num mundo em que não se usa mais “Amolar navalhas”. Somente os filmes mudos nos lembram que um dia foi preciso saber “Dar partida no carro com uma manivela”. Creio que muitos marinheiros ainda sabem “Usar um sextante”, mas fora da Marinha ninguém sabe nem o que é isso. 

O mais interessante é o fato de que, se estamos ficando burros por um lado (desaprendendo coisas) estamos ficando inteligentes (e aprendendo) pelo outro. O ser humano é adaptável. Eu já traduzi dezenas de laudas por dia usando um computador em que para escrever “í” tinha que apertar “Ctrl + 131”, e as outras vogais acentuadas eram Ctrl+197, Ctrl+135... Eu fazia isso com uma velocidade que espantava as pessoas, e agora nem lembro mais como era. 

O ser humano é plástico, flexível, maleável, adaptativo. Daqui a 20 anos estaremos dominando habilidades que não somos sequer capazes de imaginar.



sexta-feira, 6 de abril de 2012

2837) Por que Deus (6,4,2012)



(Zeus e Tétis no Monte Olimpo, por Ingres, 1811)

“Os pobres precisam de Deus” (disse-me Zezim Lourenço, dono de uma birosca na favela do Gaiamum), “porque ser pobre é viver em carne viva e com nervo exposto. Deus é um lubrificante espiritual para reduzir as esfoladuras do Ser. Precisamos de Deus como da aspirina, da vaselina, do tylenol. Num mundo onde ninguém nos responde, nada melhor que alguém de quem não esperamos respostas, apenas um ocasional milagre. Mais que isto: num mundo manipulado por potestades invisíveis que do dia para a noite fazem desabar catástrofes inesperadas sobre nossas cabeças, nada melhor do que crer numa criatura benigna capaz do mesmo, mas ao nosso favor. Deus é o raio que a harmonia do Universo fará cair do céu na cabeça do mau vizinho”.

“A classe média precisa de Deus” (disse-me Léa Rubião, dona de uma confecção de roupa infantil na Praça da Redentora), “por necessitar de força de arranque, de empuxo, de impulso de ascendência vertical rumo às coberturas do planeta. A classe média é a única que conta apenas consigo e depende apenas de si. Precisa de uma rede protetora por baixo dos trapézios econômicos entre os quais se joga; de um advogado que justifique seus ocasionais maus passos; de um treinador que a incentive aos berros rumo a marcas cada vez maiores; de um padrinho todo-poderoso que lhe sussurre ao ouvido: Vá, minha filha, enriqueça e deixe as teorias comigo”.

“Os ricos precisam de Deus” (disse-me Zse Zse Montanardi, viúva do ministro Junqueira), “para dar uma textura inconsútil às suas experiências sensoriais. Precisa de um diapasão cósmico harmonizando seus sonhos e seus prazeres, precisa de um Abstrato com inicial maiúscula. Não o vemos com pasmo e reverência, mas com paternalismo, e um confortável aconchego. O mundo material é nosso, e quem nos impede de com um estalo de dedos criar um mundo espiritual que também o seja? Ting-ling-ling! Tocamos uma campainha cósmica e Deus apareceu. Deus é um mordomo a quem delegamos o que não nos interessa”.

“Os intelectuais precisam de Deus” (disse-me Julio Weissenberg, entre baforadas de cachimbo, no recolhimento de sua biblioteca no condomínio Alephville) “porque precisam de desafios à sua altura. Que desafio maior do que provar o improvável, racionalizar o absurdo, dar nó em pingo dágua, algemar a cobra, extrair a raiz de menos um? Para o intelectual Deus é a soma entre a pedra filosofal, a quadratura do círculo, o moto perpétuo e a teoria do campo unificado. O simples fato de Deus não existir demonstrou a necessidade de inventá-lo para preencher sua própria ausência. Porque não seria justo passarmos milênios acumulando tanta pólvora e não termos um fogo capaz de consumi-la”.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

2836) Intuição (5.4.2012)




(Brian Eno)

A intuição é um recado instantâneo do inconsciente para o consciente, dizendo: “Esqueça como estava fazendo, faça assim”. 

Descrever o processo desta maneira mostra as terríveis limitações da nossa linguagem. A primeira delas, e uma das mais graves, é tratar dois conjuntos de processos como se fossem pessoas: o Sr. Inconsciente Ferreira da Silva é um senhor idoso, de óculos, cara de intelectual, enquanto que o Sr. Consciente Araújo dos Santos é um rapaz de 30 anos, ansioso, magro, jeito de workaholic. Quanto o mais jovem está estressado demais, o mais velho vem em seu socorro... Não, não é bem assim que as coisas acontecem.

Talvez cada um deles se assemelhe não a uma pessoa, mas a um escritório cheio de gente atarefada, trabalhando em grupos de dez pessoas, que se desmancham e se reagrupam em blocos de cinco ou de vinte, os quais logo se desfazem e voltam a se organizar em outras formações, tudo isto visto através daquelas câmaras aceleradas que reproduzem em alguns segundos algo que levou horas para acontecer. 

Talvez seja assim a mente humana. E de repente no andar térreo, o que recebe as visitas (o Consciente) chega correndo, esbaforido, um sujeito do sótão ou do porão (o Inconsciente), com um recado urgente: “É para cortar a comparação com pessoas e usar escritórios!”. Alguém do escritório do térreo pode até perguntar: “Como assim, escritórios?! Por que?”. Mas o mensageiro também não sabe; fica sendo escritórios mesmo, e acabou-se.

O compositor e produtor musical Brian Eno afirmou (http://bit.ly/wo8kaR) que a intuição e a lógica não são necessariamente conflitantes. A intuição é uma avaliação de nossas experiências passadas e de outras referências, mas feita de modo tão rápido que não percebemos, porque o foco de nossa atenção está voltado para outro ponto qualquer. De repente, o resultado surge pronto. 

O que ocorre (agora sou eu que estou falando) é que muitas vezes a lógica está tocando a campainha há duas horas, sem que ninguém atenda, e a intuição cochicha: “Empurra a porta pra ver se não está aberta”. Às vezes está; às vezes não. Nossa mente é como um rio largo que vai fluindo numa única direção quando o terreno é desimpedido, mas quando encontra um terreno montanhoso ele se subdivide em vários braços, cada um procurando caminho por uma trajetória diferente.

Diz Eno: 

“A intuição não é uma voz quase mística que vem de fora e fala através de nós, mas uma espécie de processamento rápido e imperfeito de nossas experiências prévias. Esse instrumento produz às vezes resultados impressionantes a grande velocidade, mas é bom lembrar que de vez em quando pode estar totalmente equivocado”.





quarta-feira, 4 de abril de 2012

2835) Dicionário Aldebarã IV (4.4.2012)




O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Otumburã”: estilo de música folclórica em que letra e música são improvisadas livremente, desde que repitam trechos melódicos tradicionais, à guisa de refrão. “Ammau”: teclado que projeta e mistura luzes coloridas em formas abstratas, arte muito apreciada pelos aldebarãs, principalmente nas noites nubladas. “Umblô”: festa popular em que cada pessoa da aldeia se veste e se caracteriza como outra, e cada participante fica tentando adivinhar quem é o homenageado de cada um. “Liargen”: o hábito de, ao ir embora, deixarmos pequenos presentes escondidos na casa onde fomos recebidos como hóspedes.

“Mung”: pequena bolsa ou saquinho de pano onde os aldebarãs guardam as sementes das frutas que comem, para semeá-las depois em qualquer terreno. “Nuspemp”: quadro-mural existente nos quartos de hotel, onde os aldebarãs deixam fotos, frases, comentários para serem vistos (e levados embora) pelo próximo hóspede daquele quarto. “Zuim-zum”: sistema de pequenas portinholas nas paredes e no teto que, ao serem abertas ou fechadas em múltiplas combinações, mantêm ventilação permanente nas casas dos aldebarãs. “Stinchars”: edifícios horizontais que se acomodam às ondulações do terreno, de modo que nas partes onde o terreno se eleva o prédio tem apenas um andar, e nos vales chega a ter seis ou sete.

“Varkonks”: pequenos batráquios onívoros que durante as refeições são colocados em baixo e em volta da mesa, mantendo o chão escrupulosamente limpo. “Farginny”: arte vegetal com múltiplos enxertos superpostos num mesmo tronco produzindo efeitos cromáticos, aromáticos, etc. “Ollikonks”: bebida gasosa dos trópicos, que a cada gole dá a sensação de beatitude absoluta durante meio minuto, mas o efeito se dissipa e produz amnésia, e a pessoa bebe mais. “Amahliam”: a sensação que temos ao colocar na boca um copo ou xícara e constatar que a bebida está na exata temperatura ideal. “Kerfash”: echarpes finíssimas que as mulheres aldebarãs usam, com cores indicando o seu estado de espírito (levam várias na bolsa para trocar durante o dia). “Rundelph”: os cinco dias mensais de trabalho voluntário não remunerado que todo aldebarã pratica nas comunidades pobres. “Lumielm”: ceias periódicas de confraternização entre amigos em que, no final, cada um se ergue e explica aos demais o que está comemorando.

terça-feira, 3 de abril de 2012

2834) Chico Anysio (3.4.2012)



O humor popular brasileiro tem camadas que foram se superpondo ao longo dos anos, cada uma delas alimentando-se das mais antigas. Primeiro veio o circo (vou logo avisando que esta cronologia é totalmente arbitrária e sem comprovação empírica). Depois veio o teatro, que se tornou uma espécie de circo oficializado (me refiro ao teatro de comédia, ao teatro de revista, ao teatro de humor musical, etc.). Depois veio o rádio, que arrebanhou seus redatores e atores do meio teatral e circense, onde estavam as pessoas que sabiam dizer coisas engraçadas e fazer vozes engraçadas. Depois veio o cinema, com as chanchadas cariocas e as comédias matutas paulistas, tipo Mazzaropi. E por fim veio a TV, que começou como uma espécie de rádio filmado, teatralizou-se à medida que pôde investir no visual, botou o cinema no bolso e acabou atingindo a maioridade como linguagem. Chico Anysio fez parte dessa maioridade, expandindo sua dramaturgia de esquetes e de tipos populares à medida que a TV incorporava novos recursos e novas linguagens.

Chico sempre se cercou de bons redatores (tiremos o chapéu ao finado Arnaud Rodrigues!). Até Lula Queiroga já escreveu para ele. Muita gente do público pensa que um humorista inventa todas as piadas que diz, o que é o mesmo que pensar que todo cantor compõe tudo que canta. Redator de humor é uma profissão ainda mais invisível do que compositor de música popular. Do famoso Bob Hope conta-se que estava na sala de redação quando um dos escritores levantou-se e foi saindo. Hope perguntou onde ele ia, o cara respondeu que ia no banheiro. E ele: “Pode ir, mas continue pensando”. Inventar piadas é um ofício torturante. A piada pode ter um milhão de qualidades: ser original; ser bem escrita; tocar em assuntos importantes; surgir no momento oportuno; etc. Mas se lhe faltar essa única qualidadezinha (ser engraçada), babau tia Chica.

O talento maior de Chico Anysio era a criação de personagens, onde ele elevou ao quadrado uma característica do humor popular, que é lidar com pessoas que se definem por uma característica central e imutável. Fulano é impaciente; Sicrano é maria-vai-com-as-outras; Beltrano dá trambique em mulher boba... Chico era um ótimo imitador de vozes (nem todo ator-humorista tem esse talento) e superpôs essa qualidade ao cacoete do personagem; em cima disso, colocou visual, figurino, etc. incomuns. Num estalo de dedos, havia um transe mediúnico em que ele “recebia” o personagem inteiro, mal lhe vestia a indumentária. O tipo, o texto, a voz, a roupa: com esse quarteto de elementos ele criou 200 personagens e teria criado 2.000 se não fosse para tão longo humor tão curta a vida.