sábado, 4 de março de 2017

4213) Albert Camus, Dashiell Hammett e o absurdo (4.3.2017)




Existe uma linha que me parece bem nítida ligando o romance policial “noir” ou “hardboiled” norte-americano e a literatura existencialista ou “do absurdo” francesa.

Esta última é mais difícil de delimitar, visto que não se trata (como o outro) de um gênero popular, submisso a fórmulas (ou pelo menos consciente da existência delas).  Ela também não se confunde, a não ser por uma certa contiguidade histórica e geográfica, com o Teatro do Absurdo, rótulo que abriga nomes como Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Jean Genêt e outros, e foi objeto de um excelente livro de Martin Esslin.

A literatura do absurdo inclui principalmente Albert Camus e Jean-Paul Sartre, dois autores unidos por uma visão existencial semelhante e separados por fortes divergências políticas.  

Uma das características desse absurdo existencialista é a presença constante do Acaso como fator determinante da tragédia humana. O homem sempre acreditou no Destino, no “estava escrito”, no “maktub”, no fato (consequente da visão religiosa do mundo) de que nossa existência é governada por forças poderosas responsáveis pelo menor dos nossos atos, e que nos deixam, de acordo com cada crença, maior ou menor amplitude de ação através do livre arbítrio.

“Os desígnios de Deus são insondáveis” é a frase-padrão com que esses crentes reagem diante de qualquer evento inexplicável, bizarro, disparatado, aparentemente injusto e gratuito. A gente não sabe como é que um coisa tão aberrante aconteceu. Deus quis. Só ele sabe o motivo, mas motivo há, sentido existe. Nós é que não percebemos.

As filosofias do Absurdo substituíram essa perplexidade por uma pior. Não existe nem Deus nem destino. A vida é gratuita, não aconteceu em função de nenhum plano pré-desenhado por ninguém. O que se chamava Destino não é mais que o Acaso, um entrechoque cego de ações coletivas e individuais.

Quando Sartre dizia que “a existência precede a essência” dizia que a filmagem precede o roteiro. Pela crença milenar, havia um roteiro traçado por Deus (a essência) e nós o estávamos cumprindo com nossa existência (a filmagem). Sartre tomou um café, acendeu um cigarro e deu uma gargalhada.  “Roteiro coisa nenhuma”, disse ele. “A gente começa a existir, e passa a roteirizar a própria essência com cada gesto, cada atitude, cada escolha, cada confronto, cada concessão. A vida é um filme onde todo mundo está improvisando ao mesmo tempo.”

O romance policial hardboiled é a história de crimes gratuitos, tragédias que teria sido tão fácil evitar, paixões que não levam a nada, ambições que levam a seis cápsulas de chumbo num beco escuro.

Em vez das grandes engrenagens históricas, sociais e econômicas que impelem as tragédias dos personagens de Balzac, Tolstoi, Stendhal e Dickens, o policial noir mostra indivíduos pequenos, desamparados e arrogantes, violentos e sem propósito, agitando-se como insetos, copulando como insetos, morrendo como insetos atraídos por uma luz que os chama e os consome.

Essa insensatez da existência está nos livros de James M. Cain (The Postman always rings twice, Double Indemnity), de Horace McCoy (They shoot horses, don’t they?, No Pockets in a shroud), livros secos e brutais que foram vivamente elogiados na França por Sartre, Camus, e outros existencialistas.

Dashiell Hammett conta, em O Falcão Maltês (1929), um desses “casos” que encapsulam algum tipo de lição, simbolismo, mensagem, ilustração, o que quiser. 

O detetive Sam Spade conta a sua cliente o episódio que ficou conhecido como “a Parábola de Flitcraft”. Flitcraft é um agente imobiliário bem sucedido, pacato, estável, residente em Tacoma (Washington), que um belo dia desaparece sem deixar rastros. Tinha dinheiro no banco, não tinha inimigos, vivia em paz com a esposa e os dois filhos. Todas as investigações para localizar Flitcraft dão com a cara no muro. Ele desapareceu (diz Sam Spade) “como um punho desaparece quando alguém abre a mão”.

Cinco anos depois, a esposa de Flitcraft contrata o detetive por ter ouvido falar que em Spokane, a poucas horas de distância, fora visto um homem parecido com o marido dela. Spade vai até lá, e era Flicraft mesmo. O desaparecido confirma tudo e diz que fugiu porque quis, e deixou bens suficientes para que a família não passasse por problemas.

Spade pergunta por quê. E ele conta o que lhe aconteceu. No dia de sua fuga, vinha andando pela rua e uma viga de metal caiu de uma construção poucos metros à frente dele, arrebentando a calçada. Por segundos de diferença ele teria sido esmagado. E nesse instante ele percebeu que sua vida séria, profissional, ordeira e prática não fazia sentido. Podia morrer devido a um acidente besta. E ele se sentiu (diz Sam Spade) “como se alguém tivesse levantado a tampa da vida e lhe mostrado o mecanismo”.

Flitcraft fugiu, vagou pelo mundo, mudou de nome, voltou pra uma cidade próxima, casou e recomeçou a vida, mas a parábola se concentra nessa sensação terrível, de que por um instante fugaz a possibilidade da morte besta (o “ato gratuito” que tanto os Surrealistas quanto os Existencialistas tanto exaltaram, com conotações distintas) arrancou todo o sentido de sua vida.

Flitcraft é um herói absurdo, tanto quanto os heróis de Camus: o Meursault de O Estrangeiro, que mata um árabe a tiros na praia “por causa do calor” e é executado, o juiz-penitente de A Queda que deixa uma mulher se jogar na água do rio e a partir daí percebe que não era “a pessoa do Bem” que fingia ser.

Ou o guerrilheiro espanhol em “O Muro” de Sartre, que, pressionado a confessar onde estava escondido o líder do seu grupo (e ele nem sabia onde era), diz um lugar qualquer, ao acaso. Os inimigos dão busca, e o líder é encontrado e morto exatamente ali. Como não achar que o mundo é absurdo, diante de um fato assim?

A morte banal é o gatilho que dispara o absurdo na maioria dessas histórias, mesmo a morte evitada, como na Parábola de Flitcraft. Assim como na Antiguidade uma pessoa qualquer era subitamente convencida da existência de Deus devido a um fato fortuito, uma iluminação literalmente “caída do céu”, o homem moderno tem uma iluminação às avessas, uma anti-epifania. Uma experiência aleatória que faz desmoronar seu mundinho estável e revela por trás dele um Caos sem dono.