segunda-feira, 10 de março de 2008
0187) Ato de misericórdia (26.10.2003)
Venho andando pela rua e um cara me aborda. Diz que é do Paraná. Está desempregado, foi expulso da pensão por falta de pagamento, não dorme há três dias, me pergunta o que fazer.
É um cara de seus quarenta e poucos anos, meio careca, bem vestido (ou pelo menos com uma roupa equivalente à minha), fala com correção.
Diz que é professor mas está procurando emprego de garçom. Eu, que já fui professor, meto a mão no bolso e entrego dez reais ao sujeito com votos de boa sorte.
Quando giro nos calcanhares e vou embora, vem a raiva. Sou mesmo um otário! O primeiro malandro que me pára na rua leva dez reais com meia-conversa! Deixei de comprar um livro de Rubem Fonseca agora mesmo, na Feirinha do Livro, que era dez reais. Aí vem o conversador e leva “dezinho” assim, sem mais nem menos.
Espanto para longe essa idéia, mas quando abro a janela da mente para que vá embora, uma outra se insinua, solerte. Acabo de cometer um terrível erro. O cara é sequestrador. Quando nos despedimos, não apertamos as mãos, eu não disse meu nome, e ele o dele? Claro que me deu um nome falso; eu, idiota como sou, poderia ter dito Felisberto ou Venceslau, mas não, dei de graça a informação que ele vai usar para, seguindo-me até o prédio em que moro, convencer o porteiro a deixá-lo entrar dizendo que é meu amigo. (E de quebra pedindo mais 10 reais ao coitado do João).
Quando eu abrir a porta (quem disse que eu olho pelo olho mágico?), ele vai me render com um 38, pedir 1 milhão de dólares, um colete à prova de balas e um helicóptero.
Tudo isso dura o tempo que eu levo para passar na primeira banca; basta ver uma capa de revista ou manchete de jornal que minha cabeça (que tem a péssima mania de pensar o tempo todo) mude de assunto e passe a pesar os prós-e-contras da Alca ou a teoria aerodinâmica da modelo na moda.
Mas de noite, diante do teclado, pensando qual foi o fato principal do dia, me vem este à memória. Admito que sou mesmo besta. Qualquer papo me comove. Nunca fui pobre, nunca passei necessidade, mas já me vi muitas vezes em cidade estranha, sem ter onde dormir, sem conhecer ninguém, com dinheiro contado no bolso. Aqui mesmo no Rio, no meu tempo de estudante, já dormi mais de uma vez sentado num banco da Rodoviária, por ser o lugar que eu mais conhecia na cidade inteira. Por que não ajudarei o cara?
Ninguém é tão bonzinho que não seja interesseiro. Cada vez que nossa mão direita pratica uma boa ação, nosso olho esquerdo espreita o dia futuro em que receberemos de volta, com juros, essa poupança esperançosa.
O cantador João Furiba conta em suas memórias como certa noite em Petrópolis, sem dinheiro no bolso e debaixo de chuva, viu um carro parar e o motorista oferecer-lhe uma carona. Era um sujeito a quem ele tinha emprestado um dinheiro muitos anos antes, e que surgiu naquela noite fria, como quem sai de dentro da cartola do Destino. Então pronto. Se aconteceu com João Furiba, por que não aconteceria comigo?
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