O Festival de Cinema do Rio tem uma mostra dos chamados cineastas primitivos: o camelô Simião Martiniano (de Recife), o recém-falecido bombeiro Afonso Brazza (de Brasília), o goiano Martins Muniz e o carioca David Rangel. Nunca vi seus filmes, mas já vi de outros “primitivos”, que têm todos um perfil semelhante. Em geral são sujeitos de origem humilde e sem muita instrução. O cinema foi a coisa mais importante de sua infância, e fazer cinema tornou-se uma obsessão para eles. Sem dinheiro, sem leitura, sem sofisticação teórica e intelectual, não querem fazer cinema para fazer Arte, nem para transmitir uma visão do mundo ou uma ideologia. Fazem cinema pelo gesto imitativo básico de todo fã: “eu adoro isto, eu amo isto, eu quero fazer isto também”.
O cineasta primitivo não se formou nas cinematecas, assistindo Orson Welles ou Fellini. Ele se formou no cinema “poeira” do bairro onde foi criado, assistindo filme de bang-bang, filme de espião, filme de amor, filme de submarino, filme de assalto, filme de monstro, todos catalogados nessa classificação ingênua e não-teórica de quem já viu milhares de filmes e nunca-jamais leu uma crítica num jornal. (Alguém deveria fazer um trabalho como a “Classificação Popular da Literatura de Cordel” de Liêdo Maranhão: quais são os gêneros cinematográficos, de acordo com seus nomes populares?) O cineasta primitivo é uma cria do cinema comercial, e em suas tentativas desajeitadas é o cinema comercial que ele procura reproduzir.
Nem todo estreante é primitivo, nem todo mau diretor é primitivo. Se o que caracteriza o primitivo é o caráter tosco, canhestro, desajeitado... por que motivo seus filmes passam em festivais? Por que a maioria dos profissionais de cinema, ao ver esses filmes, não reage com a irritação e impaciência que os maus filmes despertam, e sim com um sorriso divertido e uma simpatia que transcende a distância intelectual, sem eliminá-la?
Creio que ocorre no cinema o mesmo que ocorre com os chamados primitivos em outras artes (literatura, artes plásticas, etc.). O primitivo, o mau diretor e o artista são as pontas de um triângulo. O primitivo é um cara que sabe menos que os outros dois, no bom e no mau sentido. No mau sentido porque não domina a técnica, não sabe os recursos da câmara, interpreta erradamente a sintaxe narrativa, não tem a menor idéia de como extrair um desempenho pelo menos sofrível dos atores amadores que usa (em geral parentes, amigos e vizinhos), tem uma idéia muitíssimo confusa da história que quer contar, e, pior que tudo, filma nas horas vagas, e sem dinheiro. No bom sentido, o primitivo mantém um “olho selvagem”, uma visão ainda não totalmente condicionada por linguagens alheias, pelas fórmulas do gênero. Seu trabalho às vezes se assemelha mais ao de uma criança descobrindo o cinema do que ao de um adulto sem talento. Os primitivos que ousam imaginar, ousam inventar, são as crianças da arte, e por isto sorrimos.
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