O documentário Janelas da alma, de Walter Carvalho e João Jardim, documenta diferentes aspectos da visão humana, através de depoimentos de pessoas como o escritor José Saramago, o cineasta Wim Wenders, o música Hermeto Paschoal e outros.
Como os dois diretores do filme são míopes em grau extremo, o filme é uma reflexão sobre o ato de ver, feita por dois sujeitos que vêem com dificuldade e somente com o auxílio de próteses ópticas, mais conhecidas como os famosos fundo-de-garrafa.
O depoimento que mais me marcou foi o do fotógrafo esloveno Evgen Bavcar (pronuncia-se E-u-guen Ba-u-char). Um fotógrafo cego, já pensou? Bavcar, nascido em 1946, mora em Paris, e é doutor em filosofia, estética e história pela Sorbonne.
À primeira vista, parece ser apenas uma excentricidade a mais numa indústria cultural que já nos deu pintores que não pintam, cantores que não cantam, etc. Bavcar diz coisas muito interessantes sobre sua atividade, tanto no filme quanto na extensa entrevista publicada há pouco pela revista Coyote, de Londrina.
Ele diz, por exemplo, que para fazer uma série de fotos de uma mulher correndo à distância sobre um relvado precisou amarrar ao tornozelo da modelo uma minúscula sineta, para poder acompanhá-la com a câmara.
Ele diz, por exemplo, que para fazer uma série de fotos de uma mulher correndo à distância sobre um relvado precisou amarrar ao tornozelo da modelo uma minúscula sineta, para poder acompanhá-la com a câmara.
“Eu clicava na direção do som, fotografava o som,” explica ele. Essa frase me ficou na cabeça, porque é uma descrição muito acurada do que existe na criação artística, principalmente na literatura, que ao lado da música é a mais intuitiva de todas, e aquela em que mais se trabalha às cegas. Na literatura, procuramos organizar palavras sugerindo coisas que não estão ali. Criamos estímulos verbais, séries de instruções que geram na mente do leitor uma imagem virtual aproximada à descrição que fiz; algumas pessoas têm mais imaginação visual que outras, ou um repertório de imagens mais variado. Decerto nunca haverá uma imagem igual à outra. E tudo foi criado com palavras, no escuro.
Um poeta francês disse certa vez que “on ne cherche pas, on trouve” (“a gente não procura: a gente acha”). Essa sensação de que a poesia é uma coisa que cai do céu sem ter sido conscientemente procurada vale, sem dúvida, para alguns tipos de poesia, não para todos; mas vale. A poesia é de certa forma uma arte de atirar no que se vê, na esperança de acertar no que não se vê.
Um poeta francês disse certa vez que “on ne cherche pas, on trouve” (“a gente não procura: a gente acha”). Essa sensação de que a poesia é uma coisa que cai do céu sem ter sido conscientemente procurada vale, sem dúvida, para alguns tipos de poesia, não para todos; mas vale. A poesia é de certa forma uma arte de atirar no que se vê, na esperança de acertar no que não se vê.
Ou, no caso de Bavcar, uma tentativa de fotografar um som na esperança de captar uma imagem. O fotógrafo cego não é muito diferente do artista plástico doido (Bispo do Rosário). Ele e o seu público têm posições diferentes, e mutuamente irredutíveis, em relação às obras que produzem. Bispo estava salvando do fim do mundo aqueles objetos; nós, que achamos que o mundo não vai acabar, os vemos como obras de arte e nada mais.
Bavcar cita uma frase de Jacques Lacan: “o amor é dar uma coisa que não se possui a alguém que não quer receber”. Talvez a arte seja um desses desencontros de linguagem onde ninguém se entende mas todos saem ganhando.
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