segunda-feira, 10 de março de 2008

0154) Um documento humano (18.9.2003)




Por volta de 1966, o artista plástico inglês Tom Philips, então com 29 anos, embarcou num projeto que começou como passatempo e acabou se transformando numa empreitada que já dura quase quatro décadas.

Philips tinha curiosidade pelas técnicas do que hoje se chama “desconstrução”, aqueles trabalhos onde um artista pega uma obra já existente e interfere nela de tal forma que extrai dali uma obra de natureza totalmente diversa, e original.

Diz ele que o ponto de partida para sua idéia foi o conceito, (popularizado na época pelo escritor William Burroughs) da técnica do “cut-up”. Burroughs pegava uma página de livro ou de jornal, cortava-a em retângulos de igual tamanho, trocava a posição deles, colava-os; e aí copiava o texto resultante, interferindo nele ou não.

A idéia de Philips foi pegar um romance da época vitoriana e usar suas páginas para criar obras que misturassem literatura e pintura. Literalmente, ele se propôs a pintar por cima do texto, ocultando a maior parte dele, e deixando aparecer somente palavras isoladas que iriam formar novas frases não previstas pelo autor.

Meio ao acaso, ele comprou num sebo um exemplar do romance A Human Document (“Um Documento Humano”) de um tal W. H. Mallock, publicado em 1892, e pôs-se a trabalhar.

É uma pena que esta coluna não seja ilustrada; quem sabe um dia... [Agora é. Nada como uma década atrás da outra.] Enquanto isto, só nos resta pôr a imaginação para funcionar e tentar visualizar o trabalho de Philips.



Em alguns casos, ele borrava a página inteira, deixando intactos apenas trechos silhuetados a lápis, que ele denominava “rios”, com os quais ele construía uma frase a ser lida de cima para baixo.

Philips criou inclusive um personagem (inexistente no livro original) chamado Toge, cujo nome ele obtinha todas as vezes que as palavras “together” ou “altogether” surgiam no texto. Lápis, guache, acrílico, colage e outras técnicas foram usadas.



A certa altura, todas as 368 páginas do livro tinham se transformado em 368 pinturas. E Philips não ficou nisso. Para provar a si mesmo a riqueza de possibilidades de seu método, continuou a comprar cópias do livro, e a pintar sobre elas. Só da página 85 ele afirma ter feito mais de vinte versões.



A versão em livro tem o título A Humument – uma desconstrução do título original, resultando num neologismo que significa algo como “Um Murmuramento”. A edição que tenho (Thames & Hudson, Londres) é de 1987, mas depois dela outras já surgiram. Melhor que isto: amostras da obra, textos críticos e biográficos aparecem em pelo menos dois saites: o do próprio Tom em http://www.tomphillips.co.uk/humument/ e o de Martin McClellan em http://rosacordis.com/humument/index2.html.

Transformar um romance numa coleção de colagens e pinturas é uma das muitas maneiras de usar em benefício próprio uma obra alheia. Provam isto a beleza das pinturas e a espantosa imaginação de Philips, que sempre tem uma idéia nova na página seguinte.





Um comentário:

heliojesuino disse...

Caro Bráulio,
descobri teu blog recentemente indicado por uma amiga comum,a Eridan, e tô escarafunchando tudo.Bom demais, que leitura prazerosa!
Lendo esse artigo sobre as intervenções do Tom Philips tomo aqui a liberdaade de repassar esse link:
http://www.youtube.com/watch?v=5RicyC6e91Q
Ele dá acesso a um vídeo sobre um trabalho semelhante que realizeei sobre um Atlas de anatomia recém lançado pela Abril.
Grande abraço e parabéns pelo blog