(ilustração: Bernard Lietaer, em The Future of Money)
O símbolo oriental do Yin-Yang, que resume o pensamento Taoísta, é um círculo cortado verticalmente por uma linha em forma de S, que o divide em duas formas de tamanho igual e posição invertida, como duas gotas dágua encaixadas uma à outra.
Uma dessas gotas é branca, a outra é preta; na parte mais volumosa da gota branca há um pequeno círculo preto, e na parte correspondente da gota preta há um círculo branco. São formas simétricas, e cada uma traz dentro de si a semente do seu oposto.
Faz lembrar aquele velho preceito do Materialismo Dialético de meus tempos de estudante, de que em qualquer luta de opostos cada um deles traz em si a semente do seu contrário, a qual em determinadas condições pode ganhar força, ampliar-se, fazê-lo “virar a casaca” (era esse o termo). Algo parecido com o que referi na coluna “Os campos magnéticos” (15 de outubro).
Em seu poema “Os Dois Vigários”, Carlos Drummond compara as vidas de Padre Júlio (devasso, fornicador, desbocado) e Padre Olímpio (humilde, angustiado, auto-flagelante). Quanto mais um se entrega à devassidão e à blasfêmia, mais o outro se penitencia: “um pecava, outro pagava”. Numa noite, dois raios matam os dois vigários, que são enterrados juntos:
(...) iguaizinhos se tornaram:
onde o vício, onde a virtude,
ninguém mais o demarcava.
Enterrados lado a lado
irmanados confundidos
juliolímpio em terra neutra
uma flor nasce monótona
que não se sabe até hoje
(cinquenta anos se passaram)
se é de compaixão divina
ou divina indiferença.
Fim de papo.
Teria Drummond lido o conto “Os Teólogos” de Jorge Luís Borges (no livro O Aleph)? Nele, dois teólogos medievais cultivam uma longa rivalidade. Aureliano, o brilhante e famoso, inveja o talento de João de Panonia, o modesto e obscuro. Defendem a mesma igreja, as mesmas idéias; combatem as mesmas heresias; mas o tempo inteiro parecem dois repentistas rivais tentando superar um ao outro enquanto debatem sobre um tema aparentemente neutro.
Uma indiscrição involuntária de Aureliano leva João a morrer na fogueira; nesse dia, os dois se vêem pessoalmente pela única vez. Anos depois, um raio incendeia a cabana de Aureliano, que morre também entre as chamas. No céu (diz Borges), “Aureliano soube que, para a insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima) formavam uma só pessoa.”
Podemos ignorar a limpidez destas alegorias? O poema de Drummond vem (em Lição de Coisas) ao lado do poema “O padre e a moça”, onde amor e pecado se justificam mutuamente, “quando o homem é apenas homem / por si mesmo limitado, / em si mesmo refletido”. Cada um de nós é essa síntese de contrários; é, no verso primoroso de Olavo Bilac, “um demônio que ruge e um deus que chora”.
Todas estas obras são esforços para que possamos olhar de frente a Criatura Bifronte que forjamos à nossa imagem e semelhança, e admitir que para nós, também, Deus e o Diabo formam uma só pessoa.
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