Se Mário de Andrade fosse vivo, estaria feliz como pinto no lixo. Com aquele entusiasmo meio adolescente que tinha, ele estaria em plena campanha Brasil afora, subindo em bancos de praça ou cadeiras de engraxate, e bradando: “Brasileiros! Chegou a hora de fotografar a alma do Brasil! Escutem o rumor profundo dos terreiros! Joguem nas águas do Jequitinhonha as folhas de partitura, as canetas-tinteiro, as máquinas lambe-lambe! O século 21 trouxe a lâmpada mágica da etnografia amadora! Viva a inclusão digital! Viva a câmara portátil, o celular-com-gravador, o scanner, o CD a meio-real, e o bilhão de prateleiras vazias nos sótãos da Internet, pedindo serem preenchidas pela memória cultural brasileira! Apertem o botão, porque o Brasil já está cantando há 500 anos! E viva a rapaziada!”
O brado de “viva a rapaziada” é de Oswald, mas não faz muita diferença, porque isso tudo é só viagem mesmo: os Andrade estão mortos e enterrados, mas não devemos perder de vista o enorme heroísmo de mestre Mário, turista aprendiz de pesquisador, que bateu pernas por esse Brasilzão afora, canetinha em punho, copiando letras, transcrevendo melodias e registrando coreografias de cocos, congadas, marujadas, fandangos, tambores-de-crioula, catopês, cabocolinhos, maculelês, maracatus, canmtorias, cirandas e aboios. Um trabalho hercúleo para aquele o sujeito magro, alto, tímido, míope, com sotaque paulistano, totalmente estranho àquele ambiente, mas conseguindo, a poder de simpatia e respeito, extrair depoimentos, cânticos, exemplos e memórias daqueles poetas e músicos cujos netos estão hoje de cabelos brancos.
Tudo que Mário registrou à mão é possível registrar hoje com “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”. A grande importância do milagre digital não é a perfeição técnica que se pode alcançar: é a acessibilidade econômica de seus prodígios, o nivelamento-por-baixo das despesas necessárias para montar uma equipe de gravação de um homem só. E o Brasil está respondendo ao apelo de Mário. Por todo lado me chegam notícias de jornalistas que, mesmo para produzir uma matéria escrita, levam sua camarazinha e registram imagem, voz e discurso oral do velho mestre-sala, da velha mãe-de-santo, dos tocadores de rabeca ou batedores de bombo perdidos lá nas brenhas onde a caneta nunca chegou e onde hoje a câmara chega pela primeira vez. São professores universitários, são músicos pesquisadores, são estudantes que vão direto ao assunto, são pessoas que, com uma camarazinha, um gravadorzinho, estão registrando neste início de século 21 o apagar das luzes de uma cultura que até hoje viveu isolada atrás dos muros do Brasil oficial.
Com um décimo do esforço de Mário podemos fazer hoje dez vezes mais do que ele fêz. Podemos mostrar ao mundo que a Música Invisível Brasileira é uma contribuição que só nós podemos dar à humanidade. Mãos à obra, galera. Fotografemos esta nuvem, antes que ela vá chover no mar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário