segunda-feira, 10 de março de 2008

0151) O xadrez e o repente (14.9.2003)



Entre as fotos antigas de meu pai havia uma em que ele estava sentado diante de um tabuleiro de xadrez; um sujeito de terno, em pé, estava pegando numa peça para fazer a jogada. 

Eu perguntei porque o outro cara não jogava sentado, e Seu Nilo explicou que esse cara era um campeão espanhol ou mexicano que veio a Campina Grande e jogou as chamadas “partidas simultâneas” contra 20 ou 30 pessoas, lá no extinto e saudoso Campinense Clube. 

Se o leitor não é enxadrista, precisa saber que as simultâneas são uma tradição no mundo do xadrez. Um Mestre do xadrez é capaz de enfrentar “x” pessoas em “x” tabuleiros, e vencer a maioria das partidas. Ele faz a primeira jogada no primeiro tabuleiro, e deixa o adversário pensando. Aí joga no segundo, e passa adiante. Quando completa a rodada, volta ao primeiro tabuleiro para ver qual foi a resposta do adversário; e recomeça tudo.

Esse estilo vapt-vupt parece em desacordo com o espírito do xadrez, jogo de profundos raciocínios, imensa concentração, e demoras intermináveis. Todo cartunista já desenhou um tabuleiro de xadrez com duas múmias, ou dois esqueletos, ou dois sujeitos envoltos em teias de aranha, pensando, pensando... Então, que história é essa de jogar contra 20 ou 30 caras, e jogar na base do pêi-bufo?

O número de combinações possíveis depois da 10ª jogada é de trilhões, quatrilhões, sei lá. É impossível um jogador avaliar todas as possibilidades. Depois que ensinaram xadrez aos computadores, as máquinas começaram a experimentar todas as soluções possíveis na base da “força bruta” (ver coluna “A solução Herodes”, de 5 de julho), e de fato têm derrotado muitos campeões. 

A essência do xadrez, contudo, não é a força bruta: é a intuição estratégica e estética do grande jogador, um talento que faz com que ele rapidamente descarte 99% das jogadas possíveis e se concentre naquelas, mais improváveis, que podem iludir a vigilância do outro e lhe render um xeque-mate. 

A criatividade no xadrez se assemelha à criatividade na matemática. Os grandes matemáticos, ao conceberem uma nova fórmula, muitas vezes não sabem sequer que utilidade ela pode ter, mas sabem que ela possui “elegância” (termo muito frequente no raciocínio matemático), e portanto deve ser útil. Elegância matemática (e enxadrística) é quando se consegue reunir numa fórmula um mínimo de elementos e um máximo de possibilidades criativas.

O Mestre que joga 20 simultâneas se beneficia, ironicamente, do fato de que ele tem menos tempo para pensar do que os seus adversários. Ele não poderia enfrentar, dessa maneira, 20 Grandes Mestres. Ele joga, passa adiante, e deixa o outro sujeito ali, se aperreando. Ao chegar diante de cada tabuleiro, ele “fotografa” a posição das peças e intuitivamente percebe que deve explorar este ou aquele lado, bloquear este ou aquele setor... 

Como um legítimo repentista, ele pega a deixa e responde na hora. O verso já estava pronto, há mais de mil anos.







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