Albert Camus dizia que o mais importante problema filosófico do ser humano é o suicídio. Peço licença para discordar do ex-goleiro argelino e dizer que o pênalte, no futebol, é um problema da mesma magnitude, e de natureza não muito diversa. O pênalte é um momento privilegiado em que toda a incerteza probabilística do futebol se afunila na direção de um único gesto, um único chute. Muitas vezes, a vida e a morte de dois times é decidida nos poucos segundos entre a corrida do batedor, o chute, o salto do goleiro. É um instante tudo-ou-nada.
Li certa vez num ensaio psicanalítico sobre futebol (desses livros para quem o goleiro vê na bola “o seio materno, que ele quer a todo custo agarrar, apertar, manter de encontro a si”) que o pênalte equivalia a um fuzilamento simbólico. A falta cometida era tão grave que merecia a “penalidade máxima”, ou seja, a morte. Era preciso colocar o goleiro, imóvel, de encontro a um paredão invisível, e fazer com que o artilheiro adversário desferisse um tiro em sua direção, marcando o gol e “fuzilando-o”. Eu sempre acho que essas interpretações alegóricas forçam um pouco a mão – pode-se observar, por exemplo, que no fuzilamento atira-se para acertar no condenado, e no pênalte procura-se atirar o mais longe possível do alcance do goleiro. Mas quanto mais se prolonga uma comparação mais ela vai ficando absurda.
E, se olharmos a coisa com olhos mais práticos, o goleiro não é a grande vítima do pênalte. Discordo do título do filme do alemão Wim Wenders O medo do goleiro antes do pênalte. O título é bom como poesia, mas não expressa uma verdade futebolística. Quem tem medo antes do pênalte é o cara que vai bater. O goleiro está na dele: se a bola entrar, paciência, ninguém vai dizer que ele falhou. E, se defender, vira herói. O caso do batedor é o contrário: fazendo o gol não faz mais do que a sua obrigação, e se perder o mundo vem abaixo. O goleiro não corre riscos, embora existam casos, raros, em que ele engole um frango num pênalte: o atacante chuta uma cafôfa e ele aceita. Ou casos de falta de sorte, como no jogo Brasil x França na Copa de 86, quando o chute do francês bateu na trave, bateu nas costas do goleiro Carlos e entrou.
A iniciativa no pênalte, no entanto, está toda nos pés do batedor. O mundo está imóvel, o estádio inteiro de respiração suspensa, o trânsito parou, o sol imobilizou-se no céu como quando o exército de Josué cercou Jericó. O universo inteiro espera aquele disparo que projetará metade do mundo na euforia e a outra metade no desespero. Bater um pênalte é ter poder de vida e morte sobre si mesmo, e a ilusão sedutora de ter mais chances que o adversário. É uma roleta-russa: há uma bala, e cinco câmaras vazias, e é por isso que tanta gente aperta o gatilho. É por isso que tanta gente bota a bola embaixo do braço e diz, com plena autoridade: “Deixa comigo.”
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