Um amigo me convidou para apresentarmos juntos algo da cultura nordestina na escola israelita onde a filha dele estuda. Falamos sobre cordel, culinária, artesanato. Recitei, cantei, e acompanhei ao violão, com certa surpresa, umas 50 crianças cariocas na faixa dos 6 anos cantando, bem ensaiadinhas, “Último pau-de-arara” e “Lamento sertanejo”. Na saída, eu e ele recebemos plaquetas com versinhos carinhosos feitos pelas crianças agradecendo nossa presença: “Ó seu moço cantador / com a sua “sabilidade” / veio aqui cantar pra gente / e mostrar suas “qualidade”.
A maioria das pessoas pensa que poesia popular tem que ser cheia de erros de português. Existe, de fato, uma poesia popular dedicada a explorar o linguajar do matuto, do beradeiro, do brocoió. É um linguajar engraçado, cheio de termos arrevesados, e que mantém com a gramática a mesma relação que a maioria dos zagueiros brasileiros mantém com a bola. Essa poesia vem desde mestres antigos como Zé da Luz e Patativa do Assaré até mestres contemporâneos como José Laurentino e Jessier Quirino. Ela tenta dar status de efeito estético ao “erro de português”. Os poetas que escrevem dessa maneira sabem que estão escrevendo “errado”, mas querem com isto criar um efeito literário, que alguns leitores apreciam, e outros não. A palavra é conscientemente distorcida, para reproduzir de maneira estilizada o jeito de falar de uma população. Artistas como Guimarães Rosa (na prosa) e Elomar (na canção) usam um processo semelhante.
Os poetas matutos, no entanto, pertencem às comunidades cuja linguagem estão reproduzindo. Podem ser mais cultos, mas nasceram lá dentro, emergiram de lá, embeberam-se afetivamente daquele linguajar rude. Quando o reproduzem não é para achincalhar com o matuto ou para ridicularizá-lo à distância; é para celebrar os lampejos criativos do seu espírito. Diferente disso é a poesia produzida por pessoas que, vindo das elites ou das grandes cidades, pensa lá com seus botões que todo interiorano é burro e analfabeto, e que a única maneira de reproduzir sua linguagem é escrever como se fosse burro e analfabeto também.
O verdadeiro poeta matuto transforma um defeito real num efeito estético. O pseudo-matuto limita-se a reproduzir o defeito, porque acha que é só defeito, e que aquele tipo de gente é defeituoso. No versinho acima, o “qualidade” no singular é um escorregão (inconsciente, acredito) nessa atitude: “Eles só falam errado. Vamos falar errado também.” Mas o ponto alto é a palavra “sabilidade”, que não sei se foi criada pelas crianças ou pelas professoras. É uma palavra-cabide (ver “A arte do trocadilho”, 14 de agosto) que mistura “sabedoria” e “habilidade”. É com esse espírito de liberdade verbal que o matuto trabalha. O matuto só erra quando não sabe. Quando sabe, ele não só acerta o que existe, como inventa o que não existia ainda. Sabilidade! Não tem no Aurélio, não tem no Houaiss, mas já vou botando em circulação por minha conta.
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