Em seu prólogo ao romance de Adolfo Bioy Casares “A máquina fantástica” (“La invención de Morel”), Jorge Luís Borges ironiza os romances psicológico-realistas dos escritores russos e seus discípulos. Para ele são narrativas sem rigor, onde “...ninguém é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de separar-se para sempre, delatores por fervor ou por humildade... Essa liberdade plena acaba equivalendo à desordem mais completa.” Quando publicou sua primeira coletânea de relatos ficcionais (“História Universal da Infâmia”, 1935), sentiu-se na obrigação de avisar ao leitor que aqueles textos “não são, não pretendem ser psicológicos.”
A psicologia não é o forte de Borges. Seus contos não são análises de caráter ou investigação de abismos pessoais. Poucos personagens seus se fixam na nossa lembrança. Não sabemos a quem pertencem as vozes anônimas que nos narram histórias prodigiosas como “A Biblioteca de Babel” ou “A Loteria em Babilônia”. No livro “O Aleph”, contudo, há pelo menos duas histórias cuja única razão de ser é a análise das motivações emocionais e das racionalizações (“sim, vou fazer tal ou tal coisa, mas é por uma razão prática”) dos protagonistas.
O primeiro é “A intrusa”. Num remoto meio rural, dois irmãos apaixonam-se pela mesma mulher e a compartilham em casa; brigam por causa dela, vendem-na para um bordel, tornam-se fregueses dela, trazem-na de volta para casa, e por fim um deles a mata e os dois a enterram. Os personagens são o equivalente argentino a sertanejos machistas, rudes, fanfarrões. A mulher os seduz sem querer, apenas porque “não tinha má aparência” e “bastava que alguém a olhasse para que sorrisse.” O conto é todo sobre os irmãos: dela, diretamente, quase nada se diz.
O segundo conto é “Emma Zunz”. A protagonista é operária na fábrica de tecidos de um judeu, que provoca o suicídio do pai dela. Emma, que aos 19 anos é virgem e tem um medo patológico de homens, vai à zona portuária, entrega-se anonimamente a um marinheiro anônimo, e marca um encontro de madrugada com o judeu, a pretexto de delatar grevistas. A sós com ele, ela o mata a tiros e alega ter sido violentada. (Um crime onde há mais ingenuidade do que engenhosidade: qualquer delegado argentino reconstituiria a verdade dos fatos em 24 horas)
Estas guinadas psicológicas são reviravoltas bruscas, que parecem totalmente imprevisíveis, mas logo as aceitamos. Quando o personagem toma uma atitude decisiva, que parece contradizer tudo quanto sabíamos dele até então, temos que reavaliar esse “tudo”, e só então percebemos que a reviravolta também já estava ali, latente, só que em segundo plano. A surpresa é plausível, embora inesperada. Também é curioso ver que são duas histórias onde o sexo aparece como um dos temas principais, na casta obra do castíssimo escritor. São crimes de paixão narrados em voz baixa, junto a um fogo que se apaga aos poucos.
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