segunda-feira, 10 de março de 2008

0160) A arte de citar (25.9.2003)




(ilustração: Vita Wells)

Quando citamos uma frase, geralmente dizemos o seu autor, e mais nada: “É como dizia Shakespeare: o resto é silêncio”. Verdade. Mas talvez fosse mais certo dizer: “É como dizia o príncipe Hamlet, de Shakespeare: ...” Porque a frase é do dramaturgo, mas o contexto é do personagem. 

Um dos erros mais comuns no leitor ingênuo ou desambientado com um texto de ficção (ou dramático) é o de julgar que todas opiniões ali expostas são as opiniões pessoais do autor. Se um personagem faz um discurso racista, por exemplo, esses leitores condenam o autor, afirmando que ele pensa daquela forma.

Nelson Rodrigues disse: “O dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.” Esta citação é de Bonitinha, mas ordinária, que nunca li. Mas quem diz isto no livro? Não sei. Pode ser o desabafo de um pretendente pobre, derrotado por um playboy de Copacabana que lhe arrebata a trêfega noivinha. Pode ser um pai de arma em punho convencendo o filho recalcitrante a casar com uma herdeira feia de dar pena. Pode ser uma quarentona, sofrida, realista, sussurrando ao ouvido de um banqueiro lúbrico e septuagenário. 

A frase tem seu valor de origem, como frase em si, e tem os valores que lhe vão sendo superpostos por personagens, atores, por quem quer que as enriqueça repetindo-as.

Daria uma interessante pesquisa rastrear, por exemplo, todos os contextos em que a frase “viver é perigoso” é repetida em Grande Sertão: Veredas. Em alguns casos pode ser verdade, em outros não. Uns a dirão com temor, outros com exultação, outros com perplexidade. A cada ator que a diz, a frase se recria. 

“O nazismo, intrinsecamente, é um fato moral, um despojar-se do velho homem, que está viciado, para vestir o novo.” (Jorge Luís Borges) 
Não estou inventando a frase, nem atribuindo-a falsamente a Borges. Ele a escreveu de fato, só que a pôs na boca de Otto Dietrich zur Linde, o carrasco nazista de seu conto “Deutsches Requiem”. Seria absurdo atribuir esta frase a Borges, que deixou sua visão do nazismo muito clara nesse conto e em “Anotação ao 23 de agosto de 1944” (em Outras Inquisições). Mas quando o caso não é assim tão nítido, quando do autor sabemos apenas o nome, podemos pensar que quem diz aquilo é ele, e não o personagem.

Um escritor inventa frases alheias com a mesma facilidade com que um desenhista desenha rostos alheios. 

Nem todo desenho é um auto-retrato, e o mesmo vale para romance, conto, poema ou peça teatral. As ações e as falas dos personagens não precisam se parecer com as do autor. E aliás nem poderiam, já que os personagens precisam ser diferentes uns dos outros. Há escritores, mesmo grandes escritores, que não sabem construir personagens que não sejam parecidos com ele próprio. Outros parecem médiuns recebedores universais, e as frases que criam para seus personagens têm às vezes o poder de causar-lhe surpresa, ou repulsa, ou medo.





Um comentário:

Paulo Esdras disse...

Aconteceu diversas vezes ao lerem meus poemas. Acharem que eu estava triste, ou que tinha algum problema com meu pai. A última surpreendente foi no meu romance "Sadres - o Sábio, o Louco, o Poeta", quando um leitor experiente questionou sobre desconhecer a minha aptidão por certas áreas que era na verdade do personagem narrador. Mas fiquei feliz pela narrativa ter sido tão real para o leitor que ele imaginou ser realidade. Há braços fraternos