terça-feira, 11 de março de 2008

0235) O último número (21.12.2003)




A imprensa noticia a descoberta do maior número primo. Os números primos são os únicos números que têm existência própria, os únicos que não são formados de outros números. Você não pode dividir o número 19, por exemplo, em partes iguais. Ou ele se divide por 19, ou então por 1. É um número de verdade; como diria algum matemático sertanejo, é um número macho, um número que não abre nem prum trem. Já o número 20, por exemplo, não é número nem é nada. É uma mera duplicação do 10, ou uma quadruplicação do 5, ou uma quintuplicação do 4... Ou seja: um número sem caráter, sem personalidade. A gente só usa porque ele é útil para contar coisas, mas número, mesmo, ele não é não.

Coube ao estudante Michael Shafer, da Michigan State University, descobrir o tal “maior número primo”. Foi um trabalho feito através de uma rede de computadores conectados entre si; cada vez que um desses computadores era ligado, um programa ficava rodando, executando os cálculos, enquanto o usuário fazia seus trabalhos habituais. Foram usados 211 mil computadores, o que permitia ao grupo realizar 9 trilhões de cálculos por segundo.

Fiquei tão impressionado com isto que fui consultar A Experiência Matemática, de Philip Davis e Reuben Hersh, que tem um interessante capítulo sobre os números primos, afirmando que eles “desempenham um papel que é análogo ao dos elementos, em química”. O livro informa que em 1979 o maior número primo conhecido era 2 elevado a 21.701, menos 1. Uma nota do tradutor atualiza o dado: em 1983, o título já tinha passado para 2 elevado a 86.243, menos 1. Dentro do meu exemplar deste livro, encontrei um recorte do “Jornal do Brasil” de 1989 sobre o mesmo assunto. Naquele momento, um computador da Califórnia tinha chegado a outro “maior primo” de dimensões impressionantes – segundo o jornal, “um monstrengo de 65.097 algarismos.” Bem; tudo isto é fichinha perto da descoberta desta semana. O número achado pelo computador do estudante da MSU tem um total de 6.320.430 dígitos, e para transcrevê-lo seriam necessárias cerca de 1.400 páginas.

O grego Euclides provou, em meia dúzia de linhas, que a quantidade de primos, como a dos inteiros, é infinita. Procurar “o maior número primo” é como procurar “o maior número”. Não existe. Para que esse desespero, então? Acontece, companheiros, que não existe raça mais hipnotizável do que a dos matemáticos. Por mais racionais que sejam, vivem obcecados pelas idéias de Ordem, de Série, de Limite. Mesmo sabendo que uma série é infinita, eles sempre pensam: “Tudo bem, não vamos nunca saber qual é o Último Número Primo. Mas... qual será o Próximo?” Vão descobri-lo daqui a mais uns anos; terá 10 ou 20 milhões de dígitos, não importa, e logo em seguida tudo vai recomeçar. É a tragédia do Último Número, de Augusto dos Anjos: “É tarde, amigo! Pois que a minha autogênica grandeza nunca vibrou em tua língua presa, não te abandono mais: morro contigo!”

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