O IX Fenart exibiu em sua mostra de cinema o longa Narradores de Javé (2003), segundo filme de Eliane Caffé, que estreou com Kenoma em 1997. Esses dois filmes me produziram uma sensação estranha mas entusiasmada, que eu gostaria de compartilhar com meus leitores. Kenoma, por exemplo. É a história de um sujeito, numa cidadezinha perdida no meio do sertão, que pretende construir um moto perpétuo, ou seja, uma máquina capaz de gerar sua própria energia e manter-se em movimento contínuo. É um antigo sonho medieval, e não foram poucas as grandes mentes do passado que endoideceram em busca dessa façanha, tão impossível quanto transformar o chumbo em ouro.
Nem parece filme brasileiro. Filme brasileiro fala de injustiças sociais, biografa vultos históricos, explora o cotidiano maquilado de uma Zona Sul qualquer, adapta obras literárias. A simples escolha de um tema como o moto-perpétuo faz com que Kenoma corra numa raia que é só sua, erga uma questão que não interessou a ninguém até agora, abra uma porta que parece ter estado sempre fechada. Em Narradores de Javé, o tema é mais próximo de nossa “realidade social”: um vilarejo precisa escrever sua própria história para evitar ser tragado pelas águas de uma represa. Cada pessoa de lá tem uma versão diferente sobre a fundação da vila, mas todos são analfabetos, e há apenas um cara que sabe escrever – um sujeito de caráter pouco confiável. Sua tarefa não é menos ingrata nem menos quixotesca do que a do cara de Kenoma.
Ambos os personagens são interpretados por José Dumont. Os dois são diferentíssimos, mas têm em comum uma espécie de febre mental, de impulso selvagem que se manifesta numa tentativa permanente de negar os limites estreitos onde querem comprimi-lo. O cientista louco de Kenoma e o escrevedor delirante de Javé são ideais para Dumont extravasar uma energia que tem a ver com sua própria história, um oceano de possibilidades criativas em busca de realização. Cada triunfo e cada fracasso destes personagens é encarado pelo ator como se fosse coisa pessoal, um acerto de contas consigo mesmo e com o cinema. Dumont, carimbado na indústria como mero “nordestino”, mostra na tela a intensidade obcecada e imprevisível dos gênios loucos. Ao ver recentemente Enigma de Michael Apted (2001), vi-o o tempo inteiro no lugar de Dougray Scott, no papel do matemático que quebra o código criptográfico dos nazistas na II Guerra.
Assim como Dumont, o sertão fictício de Eliane Caffé, com seus povoados de nomes excêntricos (Kenoma, Javé) é intensamente real, e ao mesmo tempo desprende-se do mero documentarismo social para mostrar as raízes subterrâneas que o conectam a outras épocas, outros povos. É como se víssemos alquimistas de Praga ou escribas da Babilônia ressurgindo na caatinga, a poucos quilômetros das cômodas rodovias por onde passamos, num lugar além da jurisdição do realismo social e em pleno terreno da verdade cósmica.
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