terça-feira, 11 de março de 2008

0222) Tarantino, meu patrão (6.12.2003)




Tenho boas e más notícias: o mundo do futuro vai ser parecido com o mundo onde acontecem os filmes de Quentin Tarantino. Não vai ser no mundo inteiro, por igual; mas esse mundo mental está emergindo por todo o planeta. 

Imaginem um trecho em alto mar, aquela superfície interminavelmente lisa, ilusoriamente plana de um dos “convexos oceanos”, como os chamava Jorge Luís Borges. Ali, começam a surgir ilhas, emergindo das águas, umas grandes, outras pequenas, outras lá adiante, quase isoladas. Elas surgem e não param de se elevar, são arquipélagos que em breve revelam ser apenas o picos de uma cordilheira submarina que se eleva. 

Porque é isto que está acontecendo. Ilhas de violência aparentemente independentes entre si estão todas ligadas por baixo, todas fazem parte de uma imensa plataforma submarina que está vindo à flor da água. Que plataforma é essa? Não sei: estou apenas descrevendo o que enxergo através deste meu binóculo futurologista.

Uma dessas ilhas é o mundo dos personagens de Quentin Tarantino, que são como crianças grandes, capazes “de horrores e de ações sublimes”, como dizia Bilac. 

Os personagens de Tarantino passam horas discutindo sobre canções populares, seriados de TV e desenhos animados. São crianças fascinadas pelo mundo pop da cultura-de-massas, dos refrigerantes, dos automóveis. Esse lado infantilóide dos norte-americanos já foi explorado por muitos diretores, mas sempre com uma visão crítica, objetiva, intelectual. 

Tarantino talvez seja o primeiro grande diretor que fala tanto de fora quanto de dentro desse universo: ele crê no que seus personagens crêem.

É um mundo de violência gratuita, não porque existe ódio gratuito, mas porque as pessoas estão entediadas, ou têm prazer naquilo, ou acham que a violência é a maneira mais rápida e cômoda de lidar com um contratempo. 

Uma violência de quem foi criado vendo desenhos animados, nos quais se tem a impressão de que nenhuma violência ocorre, pois os personagens são de borracha ou de massa-de-modelar: são explodidos, esmagados, metralhados, picados em pedacinhos, mas num piscar de olhos se recompõem e voltar a brincar. 

Os “cartoons” invadiram o mundo real, e um dos aspectos do talento de Tarantino é ser capaz de glorificar essa violência infantil e ao mesmo tempo de encarar suas consequências, como quando deixa um personagem baleado esvair-se em sangue durante os 90 minutos que dura “Cães de Aluguel”.

Este filme e “Pulp Fiction” mostraram que Tarantino tem concepções próprias e muito eficazes sobre narrativa, estrutura de roteiro, idas-e-voltas temporais, duração do tempo de uma cena, direção de atores, longos diálogos mesclados a longas improvisações. É sua contribuição maior ao cinema, em apenas dois filmes. 

Mas esta é talvez a parte consciente, intelectual de Tarantino. É sua parte instintiva, de menino levado, de garoto punk fascinado por consumo e crueldade, que faz dele um dos primeiros diretores do século 21.







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