Há dois anos escrevi um livro analisando o filme O anjo exterminador, de Luís Buñuel, e para isto utilizei uma cópia em VHS. Hoje, achei na locadora o DVD do mesmo filme e resolvi dar uma olhada, para avaliar os “extras” e ver se havia alguma melhora na cópia. Melhora não vi nenhuma, e até os erros de tradução nas legendas são praticamente os mesmos. E há algo pior.
Quem conhece o filme lembra-se da famosa “cena repetida” logo no início.
É noite: um grupo de ricaços chega na mansão de um deles, após uma ópera, para jantar. Duas empregadas estão indo embora, mas ao ver a chegada dos convidados, elas recuam, escondem-se, esperam que eles todos subam para o andar de cima. Quando saem do esconderijo e tentam sair de novo, são surpreendidas pela chegada de um segundo grupo de convidados. Voltam a esconder-se; mas aí vemos que não, não é outro grupo: são as mesmas pessoas chegando de novo, repetindo as mesmas frases e os mesmos gestos. Depois que eles sobem pela segunda vez, as empregadas por fim conseguem partir.
É uma das cenas mais discutidas do filme, porque não existe nenhuma razão para justificar esse “replay”. Os críticos deram 1.000 explicações; em meu livro, dei a milésima primeira. O diretor deu de ombros, e ficou tudo por isso mesmo.
Agora, no entanto, essa perigosa transgressão foi corrigida. A cópia recém-lançada em DVD corrigiu o erro. Nela, as empregadas encaminham-se para a porta, recuam diante da chegada dos convidados, escondem-se, e quando eles terminam de subir elas saem do esconderijo, cruzam a porta e vão embora.
Toda a cena da segunda chegada do grupo foi cortada: um corte muito hábil, por sinal, só perceptível por quem já conhece o filme e lembra da cena.
Dizem que Guimarães Rosa era o pavor dos tipógrafos, porque insistia em escrever as palavras comuns de maneira incomum, fazendo com que os revisores o “corrigissem” o tempo todo. Parece que o mesmo está acontecendo no cinema. Devem existir dezenas de milhares de DVDs do “Anjo”, pelo mundo todo, onde o “erro” de Buñuel foi eliminado.
Eu acho isto mais perigoso do que a censura. O corte de cenas subversivas é um corte deliberado, de origem ideológica. Num regime em que há censura, sabe-se com grande nitidez quem são os censores, quem são os “inimigos”.
Num caso como este, contudo, não há censura política. Quem fêz o corte não foi um inimigo ideológico: foi alguém que julgava estar fazendo aquilo para o bem do filme, julgava estar ajudando o diretor.
Pense num inimigo perigoso! É assim que se comportam os que cortariam (se pudessem) todas as palavras inventadas, os acordes dissonantes, as histórias sem começo-meio-fim, as frases que sintaxe que nada, tudo aquilo que nasce como erro e fica sendo erro até tornar-se uma nova maneira de dizer. Cortar a cena repetida de Buñuel equivale a apagar o bigode da Mona Lisa de Marcel Duchamp.
Quem conhece o filme lembra-se da famosa “cena repetida” logo no início.
É noite: um grupo de ricaços chega na mansão de um deles, após uma ópera, para jantar. Duas empregadas estão indo embora, mas ao ver a chegada dos convidados, elas recuam, escondem-se, esperam que eles todos subam para o andar de cima. Quando saem do esconderijo e tentam sair de novo, são surpreendidas pela chegada de um segundo grupo de convidados. Voltam a esconder-se; mas aí vemos que não, não é outro grupo: são as mesmas pessoas chegando de novo, repetindo as mesmas frases e os mesmos gestos. Depois que eles sobem pela segunda vez, as empregadas por fim conseguem partir.
É uma das cenas mais discutidas do filme, porque não existe nenhuma razão para justificar esse “replay”. Os críticos deram 1.000 explicações; em meu livro, dei a milésima primeira. O diretor deu de ombros, e ficou tudo por isso mesmo.
Agora, no entanto, essa perigosa transgressão foi corrigida. A cópia recém-lançada em DVD corrigiu o erro. Nela, as empregadas encaminham-se para a porta, recuam diante da chegada dos convidados, escondem-se, e quando eles terminam de subir elas saem do esconderijo, cruzam a porta e vão embora.
Toda a cena da segunda chegada do grupo foi cortada: um corte muito hábil, por sinal, só perceptível por quem já conhece o filme e lembra da cena.
Dizem que Guimarães Rosa era o pavor dos tipógrafos, porque insistia em escrever as palavras comuns de maneira incomum, fazendo com que os revisores o “corrigissem” o tempo todo. Parece que o mesmo está acontecendo no cinema. Devem existir dezenas de milhares de DVDs do “Anjo”, pelo mundo todo, onde o “erro” de Buñuel foi eliminado.
Eu acho isto mais perigoso do que a censura. O corte de cenas subversivas é um corte deliberado, de origem ideológica. Num regime em que há censura, sabe-se com grande nitidez quem são os censores, quem são os “inimigos”.
Num caso como este, contudo, não há censura política. Quem fêz o corte não foi um inimigo ideológico: foi alguém que julgava estar fazendo aquilo para o bem do filme, julgava estar ajudando o diretor.
Pense num inimigo perigoso! É assim que se comportam os que cortariam (se pudessem) todas as palavras inventadas, os acordes dissonantes, as histórias sem começo-meio-fim, as frases que sintaxe que nada, tudo aquilo que nasce como erro e fica sendo erro até tornar-se uma nova maneira de dizer. Cortar a cena repetida de Buñuel equivale a apagar o bigode da Mona Lisa de Marcel Duchamp.
Um comentário:
Olá. Estou fazendo uma pequena análise sobre O Anjo Exterminador para ser usada em uma monografia minha (especialização em Teoria Psicanalítica) e encontrei seu livro sobre o filme (estou esperando ser entregue). Como ainda não havia lido nada a respeito do Anjo (tentando ficar impermeável a impressões de outros para fazer minha primeira leitura) fiquei estarrecido ao saber desse corte, já que minha cópia não tem essa cena repetida!
Horror, horror...
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