terça-feira, 11 de março de 2008

0219) Conselhos aos roteiristas (3.12.2003)



(ilustração: Jennifer Collier)

Duvido que exista uma classe profissional mais aconselhada do que roteirista de cinema. Quem der uma passada pela Internet vai constatar a existência de milhares de livros e de saites ensinando os segredos desta profissão. Há desde obras gerais com títulos como “Como contar uma história” até as que ensinam a escrever comédia urbana, western clássico, ficção científica. A indústria cresce, técnicos competentes fazem falta, e multiplicam-se não só as escolas profissionais como os cursos por correspondência. Não duvido ver qualquer dia títulos tipo “50 Perseguições – Escritores e Cineastas Dissecam Sequências Clássicas” ou “As 11 Cenas de Sexo Que Mudaram o Cinema”.

Uma das recomendações mais frequentes nos manuais de roteiro que circulam por aí ou nos saites especializados dos EUA é um dos postulados básicos do cinema americano: “use protagonistas com quem o público possa se identificar”, ou “faça com que o público se preocupe com seus personagens”. Este último conselho se exprime com mais clareza em inglês (“make the public care about your characters”), porque este “to care about” tem nuances emocionais mais ricas do que simplesmente “preocupar-se com” ou “interessar-se por”. O filme precisa fazer com que o público tenha uma relação afetiva com os personagens, passe a prestar atenção a tudo que sucede com eles, tente prever consequências, reações, preocupe-se com o que vem em seguida, e assim por diante.

Isto será um princípio universal? Duvido muito. Uma crítica muito frequente na voz dos norte-americanos é que não conseguiram de identificar com os personagens, porque estes eram negativos ou desagradáveis. Balela. Quem vai ver a série O silêncio dos inocentes vai para curtir a companhia de Hannibal Lecter, e não para se identificar com a agente Starling, embora possa torcer sinceramente por ela. E o grande cinema, a grande literatura, estão cheios de personagens com quem não é fácil se identificar.

Essa necessidade de identificação é necessária para que o espectador “compre” tudo que o filme põe à sua frente. Existem momentos durante um filme em que sabemos que estamos numa sala, comendo pipoca, ladeados por amigos ou parentes, olhando um retângulo luminoso e barulhento onde algo interessante acontece. Em outros momentos não estamos ali: estamos, por exemplo, andando ao longo de um corredor e chegando perto de uma porta por trás da qual algo nos espera. Não é mais um filme. Deixamos de ver o retângulo luminoso; entramos nele, suas bordas se diluíram à nossa passagem, o mundo real agora são as imagens coloridas e os sons intoleravelmente nítidos em nossos tímpanos. Quando o ator, ou o roteiro, ou a direção hábil nos arrastam lá para dentro, somos a soma balbuciante e confusa entre nossos emoções e as ações do personagem. Só quando estamos na platéia, olhando o retângulo, podemos ver tudo de fora, com a objetividade inexpugnável do psicanalista ou do crítico.

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