“It was a pleasure to burn.” Queimar era um prazer. Esta é a memorável frase inicial do romance Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, onde ele descreve uma sociedade totalitária do futuro em que é proibido ler, escrever, possuir ou publicar livros, e todos os livros descobertos pela polícia são queimados, como se faz hoje em dia com as drogas. O protagonista do livro é Montag, que começa como um fanático destruidor de livros mas aos poucos vai entrando em crise e sendo seduzido pelo grupinhos de resistentes clandestinos que procuram manter viva a comunicação escrita.
Há algo de irônico nesta frase, porque hoje, para muita gente, queimar é um prazer. E são os resistentes clandestinos que estão queimando. Refiro-me aos CDs artesanais feitos nos draives de computadores no quarto dos fundos de milhares de residências brasileiras, uma atividade que pouco a pouco está criando uma alternativa para o mercado da música hoje existente. Diz-se “queimar um CD” porque o CD é gravado a raio laser, o que nos dá a imagem de um raio luminoso que – bzzzzz! – queima a superfície brilhante do disco, imprimindo ali os zeros e uns do código digital, que no instante da leitura ótica serão convertidos na voz suave da cantora do grupo Madredeus ou na porrada apocalíptica do Nação Zumbi.
Não me refiro aos piratas de discos. Estes são a coroa da moeda cuja cara são as gravadoras multinacionais. Os piratas são como os contrabandistas, querem apenas burlar o governo e sonegar impostos. Um CD, não importa se é de Sandy & Júnior ou de Rita Lee, é uma mercadoria com boa demanda. As multinacionais estão cada vez mais irritadas pelo fato de que pagam empregados, direitos trabalhistas e impostos, e de repente chega um Al Capone que não liga para isso e toma seu mercado.
A verdadeira revolução que vai mudar o mundo e acabar tanto com as gravadoras quanto com os piratas é a queimação artesanal de discos feita pela rapaziada mais interessada na circulação de informação do que na acumulação de capital. Os escritores da ficção científica “cyberpunk” dos anos 80 diziam: “A informação quer ser livre... e quer ser cara.” Esta é a contradição básica do capitalismo de alta tecnologia que tomou conta do mercado musical. No momento em que a partir de um original podem-se fazer inúmeras cópias sem perda de qualidade, é mais rentável investir nas cópias do que investir no original. O original fica muito caro. A alternativa a médio prazo é baratear o original, trazendo a música de volta à música. É esquisito você ler na imprensa que o CD de Maria Rita teve uma verba de um milhão de reais. A música propriamente dita do disco custou uma fração deste total. Não interessa se o disco é bom ou ruim (eu acho bom). São as relações de produção que estão erradas. Queimar CDs não é apenas um prazer, é uma maneira de trazer a música de volta aos músicos.
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