terça-feira, 11 de março de 2008

0221) A revista Caras (5.12.2003)

Tem gente que não presta. Quando a revista “Caras” surgiu, um amigo meu, desses que fazem piada até com a mãe que está na UTI, teve a brilhante idéia de lançar uma revista parecida onde apareceriam aquelas garotas de bustiê que frequentam a discoteca Help, as neguinhas da Lapa, e as massagistas das termas do centro do Rio. E pronto: a revista ia se chamar “Baratas”. Acho que ele só não levou a idéia adiante porque nessa mesma época Ziraldo lançou a “Bundas”, fruto de um raciocínio verbal parecido: “Quem mostra a bunda em Caras não mostra a cara em Bundas”.

“Caras” surgiu da ampliação de uma classe média que sonha com a burguesia, cultiva um ideário de vida que ela julga ser o da burguesia, pesquisa e imita atitudes de consumo que parecem ser da burguesia; vive para isto. Alguém irá erguer o dedo e dizer: “Que a classe média brasileira nunca sofreu tanto quanto agora! Que os salários estão achatados! Que o poder aquisitivo caiu!”. Sem dúvida. Só que isto acontece com aquela parte da classe média formada por funcionários públicos, professores, jornalistas, pequenos comerciantes, etc. Se vocês prestarem atenção a essa galera de “Caras”, verão (cadê os sociólogos para anotar, tabular e quantificar esse troço?) que existe uma classe média com dinheiro pra gastar. Ela gravita, por exemplo, em torno das grandes empresas estatais ou multinacionais, em torno do “império das telecomunicações” (incluindo aí as grandes redes de TV, as empresas de telefonia celular, a indústria informática), em torno do esporte-com-patrocínio, em torno do comércio de importações e exportações, e em torno do mercado do show business, que vai muitíssimo melhor de saúde, como um todo, do que seu sub-conjunto “indústria fonográfica” – pois pode-se piratear um CD, mas não um show.

A isto junta-se o exército das inquilinas da noite, o qual inclui gatinhas comovedoramente belas, peruas que parecem quadros expressionistas, madames embalsamadas, deusas ciborgues fabricadas por clínicas e academias, e em torno delas os inescrutáveis senhores de black-tie ou dinner-jacket, fumando cigarrilhas e sorrindo para um ponto vago além da câmara. Existe nisto tudo o tradicional egoísmo das elites, mas a crueldade social implícita nesse culto às celebridades não poupa ninguém. Vips e fãs são todos dissolvidos num mesmo caldo de infantilização, de sonho com uma vida que seja só recreio, só festa, festa, festa. São o nosso Baile da Ilha Fiscal, que nunca acabou. Existe um lugar do Brasil onde a todo instante uma festa como aquela está acontecendo; é uma ilha da fantasia, um castelo sustentado por quinhentas colunas sociais, um salão das mil e uma noites onde é sempre noite, onde as mulheres estão sempre recém-perfumadas e o burburinho das conversas nunca pára de se misturar à música. Ali se realiza o sonho infantil da vida sem trabalho, da escola onde só há recreio, da festa “que não tem hora para acabar”. É o Brasil sonhando! Sonha, Brasil.

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