terça-feira, 11 de março de 2008

0217) Os comedores de luz (30.11.2003)



Existem muitas canções de ficção científica na MPB, e uma das mais emocionantes é “Brejo do Cruz”, de Chico Buarque de Hollanda.

Quero lembrar mais uma vez que ficção científica não lida apenas com espaçonaves e alienígenas. Ela é a literatura que explora as mudanças sociais, tecnológicas e biológicas que ocorrem no mundo. Ela é a mitologia que retrata as imprevisíveis evoluções por que o ser humano está passando.

Diz Chico nos primeiros versos: “A novidade lá no Brejo da Cruz é a criançada se alimentar de luz”.

Como devemos entender isto? Ao pé da letra? É possível: plantas se alimentam de luz, os próprios seres humanos precisam da luz do sol, para não ficarem parecidos com esses escritores pálidos e vampirescos que passam a noite acordados.

Crianças comem luz quando não têm o que comer. Vi uma vez o repórter da TV perguntar a um velho, numa reportagem sobre a seca: “E vocês comem o quê, aqui?” O velho respondeu: “Vento”. 

Comer vento é sobreviver. Se ele conseguir respirar, já está alimentado. É como o lacrau, na sextilha famosa de Pinto do Monteiro:

Mas eu sou como lacrau 
que do lixo se aproxima 
e passa cinco ou seis meses 
se alimentando do clima 
esperando que a vítima 
chegue e ponha o pé em cima!

O velho Pinto era escorpiano (nascido em 2 de novembro) e sabia bem o que é se alimentar do clima, sobreviver apenas da respiração, hibernar de olhos abertos, aguardando a chance de dar o bote.

Crianças comendo luz me lembram também o episódio do Césio-137 em Goiânia, quando adultos e crianças se lambuzavam de substâncias luminosas sem saber que elas eram radioativas, e eram sua sentença de morte.

Crianças que comem luz também me lembram crianças que cheiram “brilho”, coca, cola, qualquer droga zumbidora que faça um “fiuuunnn...” mais forte do que o pó de pirlimpimpim e mande os guris voando, eletrizados, cruzando os céus do Brasil, sobrevoando a Candelária e a Febem.

São chicos e são zés; crescem, vêm para o Rio, tornam-se faxineiras, bombeiros e babás; uns viram artistas, sanfoneiros que tocam blues ou maracatus.

São mais mutantes que Os Mutantes, são uma nova raça que cresceu sem ter em volta de si as paredes protetoras de um apartamento das nossas Zonas Suis. Foram expostos muito cedo a uma luz como a do sertão de Guimarães Rosa, uma luz “que assassinava demais”. A luz do vídeo, a luz da mídia, a luz das vitrines, a luz do dinheiro, a luz de um mundo que está sempre em volta deles e sempre fora do seu alcance.

Uns acabam morrendo, outros acabam matando; são milhões e se multiplicam, assumem formas mil, chegam até a parecer adultos quando crescem. Por dentro, no entanto, não crescerão nunca. As experiências mais fortes de sua vida são dessa infância que só lhes deu cicatrizes.

São os nossos mutantes, a nossa Raça Futura, são outro mundo que está resultando do nosso. Vamos saudá-los. O Brasil será deles, quando não estivermos mais aqui.








Nenhum comentário: