No ato final da peça “Nossa cidade” de Thornton Wilder (que vi numa montagem inesquecível, no Teatro Municipal de Campina, nos idos dos anos 60), há uma cena comovente em que uma moça morta recebe a chance de voltar por alguns minutos e reviver um dia do seu passado. Ela escolhe o dia de seu aniversário de doze anos, mas não consegue revivê-lo por completo, tal a intensidade das lembranças. Retorna ao convívio dos mortos, e diz: “Será que nenhum ser humano é capaz de perceber o que é a vida, enquanto a vive, minuto a minuto?” E um dos mortos responde: “Estar vivo é isso: mover-se numa nuvem de ignorância, sair pisoteando os sentimentos alheios, gastar e desperdiçar seu tempo como se tivesse um milhão de anos pela frente.”
Existe na vida humana uma contradição básica entre o fato de sabermos que podemos morrer a qualquer instante e o fato de que a vida só tem sentido se fizermos planos para o futuro, seja este a curto, médio ou longo prazo. Sabemos que não temos um milhão de anos para viver, mas mesmo um sujeito com cem anos de idade tem o direito de pensar consigo mesmo: “Ora que diabo, já vivi cem, posso aguentar mais uns vinte ou trinta...” Mesmo um sujeito no cadafalso pensa, quando lhe colocam o laço no pescoço: “Quanto é a aposta que essa corda vai se torar?...” Esperança é fogo. Edgar Poe já dizia: “Era a esperança que fazia assim tremerem os meus nervos, que assim me dava calafrios ao corpo. Era a esperança... a esperança que triunfa, mesmo sobre o cavalete de tortura, a esperança que sussurra aos ouvidos do condenado à morte, até mesmo nas masmorras da Inquisição!”
Isso não nos proíbe de desfrutar o valor e o sabor de cada momento. O roqueiro Warren Zevon está com câncer inoperável há vários meses, e todos os dias vai ao estúdio deixar material gravado. Vem recebendo homenagens pré-póstumas de todo o mundo do rock; Bob Dylan tem cantado músicas dele em seus shows mais recentes, e David Letterman o levou ao “Late Show”, onde lhe perguntou se tinha aprendido algo importante. Zevon respondeu: “Aprendi a dar valor a cada sanduíche que como.” Mais bem-de-saúde do que Zevon estava John Lennon, mas isto não impediu que um maluco o abatesse a tiros na porta de casa, semanas depois do lançamento de um disco onde, na bela faixa “Beautiful Boy”, ele diz profeticamente: “A vida é o que lhe acontece quando você está ocupado planejando outras coisas.”
Morte não manda recado, nem carta, nem telegrama. Pode ser uma bala perdida numa praça carioca, ou uma batida de carro besta numa rua de Campina. Jovens saudáveis vão-se embora aos vinte anos, enquanto alguns velhinhos, já de testamento feito, ficam anos à espera de que a indesejada das gentes venha fazer toc-toc à sua porta. Ninguém tem um milhão de anos pela frente. Tudo pode estar por um segundo. Mas faz parte do espírito humano esta certeza inabalável de que vai conseguir, de que tudo vai dar certo, de que vai dar tempo, sim, acho que vai dar.
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