Muita gente diz que bebe para esquecer os problemas, mas nunca vi ninguém dizer que cheira pó, ou fuma maconha, ou toma heroína para esquecer. Talvez o ópio sirva, mas taí, nunca conheci ninguém que tivesse fumado ópio. Bebida traz um embotamento mental que nivela todas as coisas num plano secundário. Existe um momento ideal na intoxicação alcoólica, onde o sujeito mal consegue lembrar do próprio nome ou da cidade onde está, mas é capaz de conduzir uma conversa aparentemente normal sobre qualquer assunto, além de ir ao banheiro e voltar sem cair estatelado no meio do salão. No outro dia, não lembra nada. Escritores que passaram por essas experiências são capazes de verbalizá-las melhor. Não sei de ninguém que tenha escrito melhor sobre drogas, por exemplo, do que William Burroughs, autor do Almoço Nu, que experimentou todas as drogas possíveis e morreu com mais de 80 anos.
No caso da bebida, Raymond Chandler, o grande escritor de romances policiais, disse certa vez: “Todo homem devia se embebedar umas duas vezes por ano, pelo menos para não ficar esnobando os outros”. Chandler era um sujeito tímido, irritável, exigente, ético, romântico, e um grande bebedor. Depois da morte de sua mulher, Cissy, quando ele tinha 66 anos, mergulhou cada vez mais na bebida. Era capaz de escrever a um dos seus maiores amigos, num mês de dezembro: “O Natal se aproxima, trazendo consigo todos os seus horrores ancestrais.” Quando esteve na Inglaterra, deixou de comparecer a jantares que lhe eram oferecidos por escritores porque ficava bêbado. A perspectiva de uma reunião social o apavorava; ele começava a tomar uns drinques para criar coragem, e na hora de sair do hotel já estava fora de combate.
“Começo com uma taça de vinho branco,” dizia Chandler aos 67 anos, “e acabo tomando duas garrafas de uísque por dia. Aí, paro de comer. Depois de quatro ou cinco dias assim, adoeço.” O pai de Chandler era alcoólico, e ele conseguiu manter a bebida sob controle durante a maior parte de sua vida, como quem mantém um revólver carregado em cima do guarda-roupa sem nunca usá-lo. A morte de Cissy o fêz trazer o revólver para a gaveta da escrivaninha. Chandler é considerado o maior estilista do romance policial, mas lamentava “nunca ter escrito nada digno da atenção dela, nada que pudesse ter dedicado a ela.”
Depois do funeral de Cissy, as enfermeiras foram embora e levaram a tenda de oxigênio. À noite, ele desenroscava a tampa da garrafa e se entregava ao ritual de anestesiar o mundo. Talvez lembrasse o modo como os mafiosos novaiorquinos costumavam se livrar de sujeitos indesejáveis, levando-os à noite para um passeio de lancha, durante o qual seus pés eram mergulhados num balde de cimento mole. Quando a lancha chegava ao meio do rio, o cimento tinha endurecido, e bastava empurrar o sujeito por cima da amurada. A descida era suave, e a escuridão chegava tão devagar que era bem vinda.
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