sábado, 8 de março de 2008

0100) O império do número (17.7.2003)





Toda cultura se baseia, entre outras coisas, naquilo que eu denomino Alucinação Motivacional. É preciso convencer a população a fazer certas coisas, e cada cultura encontra motivações diferentes.

Por que Alucinação? Por uma razão muito simples, que qualquer jovem idealista entende: “sonho que se sonha só, é sonho; mas sonho que se sonha junto é realidade.” Quem disse isso? Lênin ou Lennon? Não importa. É a regra que todos os governos, desde os faraós, têm posto em prática. 

A maior Alucinação Motivacional do mundo de hoje é o Número. Não vou nem falar em dinheiro: falarei em esporte. Toda competição esportiva é uma disputa para ver quem atinge primeiro uma determinada quantidade de pontos ou, sendo fixado um limite de tempo, quem está com mais pontos quando este limite é atingido. 

Queremos que os recordes sejam batidos, não importa quais. Tem sujeitos que não fazem outra coisa na vida senão arremessar uma bola de ferro. Um “pool” de patrocinadores o sustenta. Treinos, dietas especiais, comissões técnicas, etc. Tudo isto para que, de quatro em quatro anos, ele vá à Olimpíada e jogue a bola-de-ferro dele mais longe do que a bola do cara da Mongólia ou do Canadá.

Tenho enorme admiração pelas pessoas capazes de façanhas físicas. Admiro o cara que corre 42 quilômetros sem sofrer um enfarte, ou o outro que ergue halteres pesadíssimos sem que os intestinos lhe explodam pelo orifício mais próximo. Mas o lado físico da coisa só beneficia o atleta. O público não ganha um só grama de musculatura vendo isto: ele pensa apenas no número. 


Na Idade Média era o medo do Demônio, das feiticeiras, da Peste e do fim do mundo. 

Na URSS dos planos qüinqüenais, era o entusiasmo de pessoas que acreditavam estar criando a sociedade livre e igualitária do futuro. 

Populações que passam fome, crises, invasões, precisam se agrupar em torno de idéias nítidas e fortes, para poder enfrentar os problemas e vencê-los. E é aí que entra a Alucinação Motivacional.

Se um milhão de pessoas acreditam numa alucinação e querem batalhar por ela, tanto faz. Se eu estou numa sala e alguém diz que está vendo um elefante cor-de-rosa, eu acho que o cara está doido. Se todo mundo começa a apontar para o mesmo espaço vazio e concordar que o elefante está ali, quem vai parar em João Ribeiro sou eu. Realidade e Alucinação são definidas por consenso.

Com isto, o mundo entrou num Delírio Quantitativo. Os recordes olímpicos chegaram a um ponto tal de sofisticação que tornaram-se invisíveis. Finda a corrida, só os aparelhos eletrônicos sabem quem ganhou. Com que cara um sujeito volta pra casa e diz à família que perdeu a medalha por 16 milésimos de segundo?

O russo Sergei Bubka bateu o recorde mundial de salto-com-vara 35 vezes, e acabou tendo uma depressão braba. Cada conquista aumentava a sua obrigação de tentar a próxima, pra não ficar desmoralizado. Ele aprendeu, coitado, que os carneirinhos do sucesso são mais numerosos que os da insônia.

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