segunda-feira, 10 de março de 2008

0183) A pegadinha de Jorge Luís Borges (22.10.2003)




(Borges no Labirinto de Creta - foto do "Atlas" de Borges & Maria Kodama)

Dois anos antes de Orson Welles inventar sua invasão de marcianos hostis, Borges começou a inventar um dos seus gêneros preferidos de conto, a resenha de um livro que não existe, quando criticou o imaginário “A aproximação a Almotásim”, em 1936.

Este discreto truque literário desnorteou por algum tempo os críticos distraídos, que levavam Borges a sério e saíam a procurar o livro comentado. Hoje, a obra de Borges está bem divulgada, e seus imitadores são milhares. O “ensaio aparentemente a sério sobre uma obra que não existe”, se não virou clichê, talvez tenha virado um gênero literário.

Em seu texto, Borges analisa um romance policial de um advogado de Bombaim, Mir Bahadur Ali, intitulado “A aproximação a Almotásim”; cita críticos, escritores e editoras familiares aos leitores da época.

Mais do que isto: Borges usa todo o repertório convencional de recursos de um resenhador. Descreve com vislumbres tentadores o desencadear do início da trama, para depois dizer: “Assim acaba o segundo capítulo da obra. Impossível traçar as péripécias dos dezenove restantes”. Borges compara duas edições do livro, ironiza as ilustrações, lamenta as mudanças, finge voltar atrás e reler trechos.

A certa altura, ao comentar a hipotética segunda edição, diz distraidamente: “Tenho-a à vista; não consegui obter a primeira, que pressinto muito superior. Autoriza-me a isto um apêndice, que resume a diferença fundamental entre a versão primitiva de 1932 e a de 1934.”

Todo texto que lemos vem dentro de uma moldura de convenções. Qualquer texto em qualquer veículo (livro didático, romance, revista, tablóide popular, enciclopédia, etc.) é interpretado em função do contexto em que aparece. A publicação original de “Almotásim” foi num livro de ensaios, História da Eternidade. Logo após o famoso ensaio onde Borges examina e compara as diferentes traduções das Mil e Uma Noites, aparecem duas “notas” do autor: o texto sobre “Almotásim” e “A arte de injuriar”, onde Borges compara insultos e sarcasmos famosos da literatura e da História.

Nada no contexto poderia indicar que “Almotásim” era um texto fictício. Somente em 1941, quando apareceu na coletânea O jardim dos caminhos que se bifurcam, veio ao lado de outros textos do mesmo tipo, onde personagens reais aparecem manuseando e citando livros fictícios.

Em “A arte de injuriar”, Borges diz que quem profere um insulto ou pratica uma burla deve fazê-lo sabendo que tudo que disser poderá ser usado contra si, e que é possível disfarçar uma ofensa evidente num texto que possa ter também uma interpretação neutra ou elogiosa. Diz que as técnicas satíricas onde se ridiculariza um autor e os falsos elogios que a disfarçam “não são atividades incompatíveis, mas são tão diversas que ninguém as conjugou até agora.” É o que ele faz em seu ensaios imaginários, onde é ao mesmo tempo um autor inventando histórias e um crítico demolindo-as.





Um comentário:

Cezar Berger Junior disse...

Obrigado pela "luz"! Acabei de ler o conto e fiquei intrigado, não estava entendendo o motivo de tantas citações de pessoas e editoras. É difícil encarar o Borges pela primeira vez, ainda mais em um livro tão consagrado quanto "Ficções" (a minha edição contém o "A Aproximação de Almotásim").