Metade do mundo ouviu falar em Zé Limeira, o poeta do absurdo. Até nos círculos extra-cantoria, de pessoas completamente leigas sobre o assunto, o nome dele é o mais conhecido. Mesmo aquele pessoal distante, que ouviu o galo cantar mas não sabe onde, lembra vagamente, quando se fala no assunto “cantadores do Nordeste”, da figura desse poeta maluco que dizia coisas sem pé nem cabeça. Talvez ele e o Cego Aderaldo sejam os personagens mais conhecidos do público em geral, dessa turma para quem os nomes de Pinto do Monteiro ou Romano do Teixeira nada dizem.
Que Zé Limeira existiu, é fora de qualquer dúvida. Como personagem, no entanto, ele brotou no livro de Orlando Tejo, Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, que já circula pelo Brasil há uns bom 30 anos. O livro de Tejo, que tem capítulos brilhantes descrevendo cantoria-de-feira, cantoria-de-cabaré, traz uma quantidade imensa de versos improvisados por Limeira e seus parceiros. A quantidade é muito grande, para uma época em que era mais difícil conseguir um gravador do que um gerador-de-luz. Surgiu então a lenda de que muitos daqueles versos atribuídos a Limeira seriam invenção do próprio Tejo e de seus comparsas do Café São Braz em Campina e do Ponto de Cem Réis em João Pessoa. Contra esta versão, pesava o fato inconteste de que Limeira existiu de fato, são dezenas as testemunhas de suas cantorias e da maioria dos seus versos.
Fonte histórica à parte, a peça de José Bezerra O mundo louco do poeta Zé Limeira ajudou a encorpar o mito do poeta junto a um público jovem, de classe média, sem muita aproximação com a cantoria. Artigos publicados em jornais e revistas culturais do Rio e de São Paulo foram cristalizando a imagem do negão de lenço vermelho no pescoço, que só andava a pé, inventava palavras sem pé nem cabeça, misturava sem a menor cerimônia personagens da política brasileira e da Bíblia, e morreu durante uma cantoria porque ousou cantar a balada da “Pavoa Devoradora”.
Ocorreu com Zé Limeira uma coisa que vemos ocorrer o tempo inteiro diante dos nossos olhos. Um indivíduo encarna durante sua vida um tipo, um personagem. Quando ele morre, toda história que possa ser atribuída a esse personagem passa a ser atribuída a ele. É de conhecimento geral que grande parte dos crimes atribuídos a Lampião não foram cometidos por ele. No mundo pouco nítido da tradição oral, onde se superpõem versões conflitantes, incompletas, fantasiosas, equivocadas, um personagem acaba agregando a si próprio numerosos episódios alheios. Depois da morte, então, nem se fala. “Só pode ter sido coisa de Fulano!” afirma alguém. E como num passe de mágica o crime anônimo é atribuído a um bandido famoso, o milagre é creditado a Frei Damião, a frase espirituosa a Oto Lara Resende, o verso maluco a Zé Limeira. Os personagens que encarnam viram ímãs, atraindo para si tudo que corresponde àquele perfil. “Só pode ser coisa de Zé Limeira!”. E a obra póstuma do nego vai crescendo.
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Um comentário:
Caro Bráulio Tavares,
Sou um aficionado do poeta do absurdo, sua poesia e linguagem. Há pouco um amigo descobriu uma personalidade mineira reminiscente de Zé Limeira e que você provavelmente desconhece: Antônio Lopo Montalvão. Fundou uma cidade de forma bastante ze-pereiriana além de se meter a teorizar sobre umas relíquias arqueológicas mineiras. Veja um trecho de um escrito montalvaniano: "As mnemônicas inscrições rupestres cochaninas mostram outras bases biológicas desconhecidas pelos nossos bioquímicos, como outros termos energéticos desconhecidos pelos nossos geofísicos." Há um post recente no Geófagos sobre o mesmo:
http://geofagos.wordpress.com/2008/06/24/antonio-lopo-montalvao-e-a-arqueologia-brasileira-uma-breve-historia/
Tenho certeza que lhe interessará.
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