segunda-feira, 10 de março de 2008

0165) O impessoal (1.10.2003)



Existe gente que tem uma vocação para ser impessoal. A gente encontra muitos deles na Europa, principalmente nos países germânicos ou escandinavos. Deve ser uma mistura de questão genética com questão cultural, como aliás tudo na vida. 

Esses indivíduos gostam de manter contatos frios, distantes, mas não hostis. Preferem estar sós do que acompanhados, calados do que conversando. Sentem-se mais à vontade com um animal doméstico do que com uma pessoa da família.

O sujeito impessoal adora hotéis. Quando viaja, às vezes um amigo ou parente lhe oferece hospedagem; ele dá uma desculpa, e foge para o hotel. Gosta daquele tratamento respeitoso mas distante: “Boa noite, senhor... pois não, senhor...” Gosta dessas gentilezas superficiais, mas detesta quem puxa conversa. 

É para pessoas desse tipo que os supermercados foram inventados, porque ali ele pode entrar sem cumprimentar ninguém, ir direto à gôndola que lhe interessa, botar os produtos na cestinha, ir ao caixa, pagar, guardar o troco, pegar as sacolas, sumir na escuridão aconchegante da metrópole deserta. 

Para pessoas assim, uma feira-livre num sábado de manhã é uma tortura da Gestapo.

Conheço tipos assim. Se ao chegar no prédio ele vê um vizinho dez metros à frente, já chegando ao elevador, pára e finge que está pegando a correspondência, para que o outro suba sozinho, e ele não tenha que passar dez andares comentando fenômenos atmosféricos. 

Ao ver um conhecido no metrô ou no ônibus, enfia a cara no jornal que traz sempre à mão. A conversa banal dos que se encontram por acaso parece ser-lhe extraída a torquês. 

Quando tem que caminhar dois quarteirões ao lado de alguém, sua mente se desespera em busca de assuntos irrelevantes que possam ser prolongados sem que nada de pessoal precise ser dito.

“Nada de pessoal”. Esta frase parece ser uma senha para o que se passa na alma dessas criaturas. Quando criticam alguém, quando se queixam, quando deixam escapar um tiquinho-tanto-assim de emoção, apressam-se a avisar: “Não é nada de pessoal.” 

Não têm raiva de pessoas, e sim de princípios morais. Quanto menos envolvimento, melhor. Gostam de táxis, de taxi-girls, de TV a cabo, de compras pelo correio, de secretárias eletrônicas. 

Suas amizades são como aquelas amizades inglesas ironizadas por Jorge Luís Borges, “que começam por excluir a confidência e que muito depressa omitem o diálogo”. 

Aceitam a companhia de outras pessoas, desde que estas se comportem menos como pessoas do que como peças da mobília.

Os impessoais fingem que não nos viram, fazem o possível para não nos escutar. Se ao cruzar com eles no saguão os enxergássemos como são realmente, veríamos a enorme carapaça de um caramujo, refugiando-se num canto, tentando proteger a lesmazinha interna que nunca conseguiu abandonar a armadura protetora. E se encostássemos o ouvido à concha, não ouviríamos ninguém a nos responder “bom-dia”: ouviríamos apenas o marulho de um mar sem nome numa praia deserta.





2 comentários:

Vinicius A. Amaral disse...

Eu queria fazer, na verdade, uma confissão e um pedido. Ao contrário das criaturas que serviram de tema para esse artigo, eu queria confidenciar que depois que eu descobri esse blog eu me tornei um fã "unofficial" de Bráulio Tavares. Digo isso porque por mais que eu tente não consigo achar os seus livros, seus poemas, a não ser ali e aqui na net, mas coisa bem esparsa mesmo. Mas para minha alegria existem esses post maravilhosos, e isso é o que salva o meu dia!
Quanto ao pedido é o seguinte; Bráulio, depois de ler esse post sobre o impessoal e outro sobre o penitente, acho que faltou um outro personagem para essa galeria, o indiferente. Será que você poderia, por favor, nos presentear com uma explanação sobre esse ser tão bizarro da nossa fauna humana?
Abços.

Braulio Tavares disse...

Olá, Vinicius. Obrigado pela leitura e pelo pedido. Fica anotado. Quanto aos meus livros, procure no saite Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br) tem dezenas deles, geralmente a preços mais baratos que os das livrarias. Você também pode ler a coluna do dia em http://jornaldaparaiba.globo.com Valeu!