quinta-feira, 21 de maio de 2009

1046) “Bandeira Nordestina” (23.7.2006)



Chega às minhas mãos o novo livro+CD de Jessier Quirino, Bandeira Nordestina. Jessier está ampliando o seu raio de ação, que começou nos livros e passou aos recitais (ou terá sido o contrário?) e agora já chega à gravação de CDs e à realização de shows em que música e poesia se misturam. Na tradição de Zé da Luz, Catulo da Paixão Cearense, José Laurentino, Chico Pedrosa, Jessier é o grande poeta regional de sua geração (que é a mesma minha), e tem trazido para este estilo de poesia uma contribuição própria, um modo de escrever próprio, que é o que distingue os grandes poetas. Eles não apenas assimilam tudo que foi feito antes, mas abrem novos caminhos para o que virá depois.

Eu sempre tive um problema com certo tipo de poesia matuta em que o poeta parece interessado apenas em estropiar a língua, em convencer o leitor de que a principal característica dos matutos é serem intelectualmente simplórios, e incapazes de falar e escrever português. Eu acho o contrário. O matuto comete erros, claro. Os diplomados também (ai das revistas e dos jornais brasileiros se não existisse um exército de revisores consertando os nossos solecismos!). O que distingue o matuto (e nisto a poesia de Jessier é exemplar) é sua capacidade fabulatória, de criar historinhas do nada, e alegorias a partir dos menores acontecimentos; sua visão crítica e irônica quanto aos costumes “da cidade”; sua percepção intuitiva das motivações por trás dos atos humanos; sua inesgotável capacidade de se maravilhar diante de coisinhas bobas da Natureza e da vida cotidiana; seu talento para injetar lirismo e filosofia em tudo que expressa o modo de vida rural, seus ofícios e lazeres, suas tradições e valores.

O que aos urbanos menos informados soa como erro-de-português é muitas vezes arcaísmo, ou modo de falar específico de uma comunidade rural, tão legítimo quanto o das comunidades urbanas (futebolistas, músicos, técnicos em informática, etc.). Sem falar nos neologismos, das derivações pessoais produzidas pela imaginação do poeta. É neste detalhe que Jessier se afasta um pouco dos poetas citados acima e se aproxima estilisticamente de poetas como Manuel de Barros ou prosadores como Guimarães Rosa, sempre dispostos a recombinar sufixos e prefixos, derivações por semelhança, conjugação verbal de substantivos, substantivação de adjetivos e assim por diante.

Neste livro mais recente há obras-primas de elegia rural como “A Cumeeira de Aroeira Lá da Casa Grande”, retratos da cultura regional como “Endereço de Matuto”, “O Dizido das Horas do Sertão”, numerosas e ferinas sátiras políticas. E há principalmente poemas românticos e maliciosos, cheios de verve e de finura descritiva: “Maria Pano de Chão”, “Fé Menina”, “A Cor dos Beicinhos Dela”, “Dois Brincos Recém Tirados”. A poesia matuta, como eu a entendo, é tão variada e cheia de sutilezas quanto a poesia urbana. É a mesma orquestra sinfônica, só que com outros instrumentos.

2 comentários:

Nina Araújo disse...

Deu Repente Nas Meninas


Nina:

Ô carcunda peçonhento,
Catinguento, tripa enchida
Bafo de cobra encardida,
Tu é bicheira no mundo
Jerico do caxaprego,
Zarolho rabo de porca
Ô focinho de uma foca,
Troncho,banda de cambito
Brecheiro de repentista,
Tu é calo de punguista
É pulga em riba de paca,
Pintor de pinta de vaca
Acocorado das vistas
Tem leseira o teu batuque
Pão dormido, pé de estuque,
Vai-te embora ,dê sumiço
Que eu assumo o compromisso,
Pois sou guieiro de onça
Pegador de burro chucro
Amigo da ligeireza, bom de grito
Sem bambeza e eficiente nos lucro.

Vera:

Ô pingunço duma figa
Tu é doidim de defunto
Saco de peido profundo
Boi de pescoço engalhado
Entojo sapo avexado
Cobra do meio de brejo
Tua venta é o sacrilégio
Mais feio que caninana
Língua roxa pau de cana
Fio do cão que se arreganha
Trouxa de buxo de banha
Sem freguês pra estropiar
Caritó beiço de imbirra
A desgraça é a tua filha
Vai-te embora e eu fico cá
Que eu sou rabeca de xote
Eu sou mungunzá do norte
Cantador do Ceará
Dê partida velho bode
Por aqui só é quem pode
Vê se arranja outro lugar.


Nina:

Vai piolho de uma vaca
Jumento que range e empaca
Pau oco duma aroeira
Molambo pé de touceira
Bafo forte de água rás
Bodega de satanás
Tua cara é fim de roça
Dou–te um croqui e uma coça
Maleita esverdeada
Miado de besta fraca
Cangote véio zebu
Meu gato é melhor que tu
Se arrodeie noutra feira
Manguaceiro de peneira
Tu aqui é um urubu
E eu sou munheca de ouro
Melhor peão de Uruçú
Com dois pio laço o touro
Sem ver risco ou chifrarada
Vai simbora rio de esporo
Minha fama é de umbigada
E não há rima quebrada
Que me tire deste angú

Vera:

Ô cambará de tapera
Tu tem a fuça de um poste
Cavalgadura de bode
Paiaço couro de asno
Fracote boca de pasmo
Sucuri sem ter o bote
Encosto coice de trote
Ninguém há que lhe comporte
Bufento, bocó e lento
Cuspido só no tormento
Tu é gamela de vento
Quando rinha é só côco
Dê seu rumo ,vá, avia
Porque aqui a faca afia
A peleja é desgarrada
Porco sonso ruim de briga
Tu é um poço de intriga
É torto ,mouco e enfronhado
Vá carpir pro outro lado
Catoco de pouca sola
Vê se tem quem te consola
Cupinzento nó de urtiga
Balofo, fêi da bexiga!

Nina:

Bico azedo gasturado
Gabola de pôco dente
Xeleléu bem saliente
Morreu seco e inda não sabe
Palmatória de comadre
Alcoviteiro esquisito
Jagunço de periquito
Guardador de espinhela
Teu falar é u’a esparrela
Tem o nome na policia
Papudo boa imundícia
Pau chumbado sem a beira
Fuinha pau de moleira
Duro que nem catingueira
Vá cantar noutro terreiro
Que eu aqui cheguei primeiro
Seu xereta apalermado
Tome tento dê de lado
Sou felpa e mandacarú
Sou mais forte do que tu
Onde bato a coisa entorta
Vá dormir noutra taboca
Fio de jaca com jacú

Vera:

Fala tôco de penico
Bicudo chôca de pata
Focim duma maritaca
Berro fino de cabrito
Lesado até o infinito
Topeira, trouxo abestado
Galheiro filho de grilo
Trombudo saco furado
Deslambido avexado
Eu cansei de lhe dar bico
Frangote desacochado
Lasquento mau ajambrado
Carrapato de cumbico
Alvoroço de mutuca
Arrenegado da cuca
Não vou fugir do fundurço
Chupo manga enquanto tusso
Meu padim me deu impulso
Puxo tamborete e fole
Que comigo ninguém bole.
Não cavuco no gracejo
Sou formão de sertanejo
Que derruba cabra mole.


Nina Araújo e Vera Borato.


Viva o nordeste, olhando daqui do Leblon...infelizmente, porque eu queria é estar lá...Viva Jessier Quirino! Viva Bráulio!

Anônimo disse...

Gosto do que você escreve, e como escreve!