segunda-feira, 6 de abril de 2009

0950) Dolores Sierra (2.4.2006)



“Dolores Sierra”, de Wilson Batista e Jorge de Castro, foi gravada indelevelmente por Nelson Gonçalves em 1956. Para os mais gastronômicos é um bolero banal e sem beleza, mas para mim é uma letra digna de Jorge Luís Borges. 

A canção:  https://www.youtube.com/watch?v=wIZ793o-v2U

Surgiu no mesmo ano de “Conceição”, samba-canção de Dunga e Jair Amorim, que Cauby Peixoto tornou famosa: “Conceição, eu me lembro muito bem: vivia no morro a sonhar, com coisas que o morro não tem...” A velha história das mocinhas proletárias que, pensando em vestidos e palacetes, deixam-se seduzir pelos homens “do asfalto”.

A canção gravada por Nelson tem esse mesmo espírito, tão brasileiro, mas já começa com uma nota de exotismo: 

“Dolores Sierra 
vive em Barcelona à beira do cais. 
Não tem castanholas 
e faz companhia a quem lhe der mais.” 

(Lembro que, quando ouvia a música na infância, pensava ingenuamente que a moça fazia companhia a quem lhe desse mais companhia.) 

A biografia prossegue: 

“Nasceu em Salamanca, seu pai lavrador, 
veio à maioridade. 
Pois quem nasce na roça 
tem sempre a ilusão 
de morar na cidade”. 

Barcelona, Salamanca e castanholas são meros adereços, mero “traje típico” da personagem, tanto quanto a Babilônia e a Babel de Borges eram no fundo sua Buenos Aires natal. 

Aqui, a memória instintiva do poeta o leva a falar em “lavrador” e “roça”, traindo a presença do mundo social que o inspira.

E ele continua: 

“Sua mãe chorou no dia em que ela partiu 
pra conhecer Dom Pedrito 
que prometeu, não cumpriu... 
Com frio e sede, só, na sarjeta, 
sorriu para um homem 
e ganhou a primeira peseta”. 

Dom Pedrito e as pesetas são, mais uma vez, trajes típicos; os versos contam toda a história com uma bela economia de meios. 

É belo o arqueamento angustiado da melodia em “com frio e sede, só, na sarjeta”, e o contraste com as notas solertes de “sorriu para um homem”, onde quase visualizamos um personagem masculino surgindo na tela, enquadrado em contraluz.

E aí vem o primoroso desfecho: 

“O navio apitou. 
Paguei a despesa, a história se encerra. 
Adeus, Barcelona, adeus... Adeus, Dolores Sierra”. 

Duas vezes na minha vida tive esta experiência estética. A primeira foi nesta canção, quando, no meio de uma narrativa na terceira pessoa, surge como que do nada este “Eu” que não pertence ao autor, mas a um personagem, dizendo que “o navio apitou” e que não pode se estender mais. 

A segunda vez foi lendo “A Loteria de Babilônia” de Borges, quando, a certa altura de sua descrição desta cidade fantasmagórica, regida por uma Companhia invisível (que determina por sorteio a vida e a morte de todos os habitantes), li com espanto o narrador dizer: “Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está por zarpar; mas tratarei de explicar tudo”. 

Recurso cediço e folhetinesco, decerto, que serve de álibi para as explicações truncadas e o final abrupto. Mas como um clichê banal se enriquece, ao ser transportado do folhetim para a canção, ou para o conto metafísico!





2 comentários:

Paulo disse...

Braulio, fecho contigo em gênero, número e grau. Suas colocações remetem a um momento histórico na evolução do pensamento critico brasileiro.

Um abraço

Domingos Bezerra disse...

Olá; Bráulio, excelentes colocações. Acompanharei con mais cagar seus textos. Abs