“Dolores Sierra”, de Wilson Batista e Jorge de Castro, foi gravada indelevelmente por Nelson Gonçalves em 1956. Para os mais gastronômicos é um bolero banal e sem beleza, mas para mim é uma letra digna de Jorge Luís Borges.
A canção: https://www.youtube.com/watch?v=wIZ793o-v2U
Surgiu no mesmo ano de “Conceição”, samba-canção de Dunga e Jair Amorim, que Cauby Peixoto tornou famosa: “Conceição, eu me lembro muito bem: vivia no morro a sonhar, com coisas que o morro não tem...” A velha história das mocinhas proletárias que, pensando em vestidos e palacetes, deixam-se seduzir pelos homens “do asfalto”.
A canção gravada por Nelson tem esse mesmo espírito, tão brasileiro, mas já começa com uma nota de exotismo:
“Dolores Sierra
vive em Barcelona à beira do cais.
Não tem castanholas
e faz companhia a quem lhe der mais.”
(Lembro que, quando ouvia a música na infância, pensava ingenuamente que a moça fazia companhia a quem lhe desse mais companhia.)
A biografia prossegue:
“Nasceu em Salamanca, seu pai lavrador,
veio à maioridade.
Pois quem nasce na roça
tem sempre a ilusão
de morar na cidade”.
Barcelona, Salamanca e castanholas são meros adereços, mero “traje típico” da personagem, tanto quanto a Babilônia e a Babel de Borges eram no fundo sua Buenos Aires natal.
Aqui, a memória instintiva do poeta o leva a falar em “lavrador” e “roça”, traindo a presença do mundo social que o inspira.
E ele continua:
“Sua mãe chorou no dia em que ela partiu
pra conhecer Dom Pedrito
que prometeu, não cumpriu...
Com frio e sede, só, na sarjeta,
sorriu para um homem
e ganhou a primeira peseta”.
Dom Pedrito e as pesetas são, mais uma vez, trajes típicos; os versos contam toda a história com uma bela economia de meios.
É belo o arqueamento angustiado da melodia em “com frio e sede, só, na sarjeta”, e o contraste com as notas solertes de “sorriu para um homem”, onde quase visualizamos um personagem masculino surgindo na tela, enquadrado em contraluz.
E aí vem o primoroso desfecho:
“O navio apitou.
Paguei a despesa, a história se encerra.
Adeus, Barcelona, adeus... Adeus, Dolores Sierra”.
Duas vezes na minha vida tive esta experiência estética. A primeira foi nesta canção, quando, no meio de uma narrativa na terceira pessoa, surge como que do nada este “Eu” que não pertence ao autor, mas a um personagem, dizendo que “o navio apitou” e que não pode se estender mais.
A segunda vez foi lendo “A Loteria de Babilônia” de Borges, quando, a certa altura de sua descrição desta cidade fantasmagórica, regida por uma Companhia invisível (que determina por sorteio a vida e a morte de todos os habitantes), li com espanto o narrador dizer: “Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está por zarpar; mas tratarei de explicar tudo”.
Recurso cediço e folhetinesco, decerto, que serve de álibi para as explicações truncadas e o final abrupto. Mas como um clichê banal se enriquece, ao ser transportado do folhetim para a canção, ou para o conto metafísico!
“Dolores Sierra
vive em Barcelona à beira do cais.
Não tem castanholas
e faz companhia a quem lhe der mais.”
(Lembro que, quando ouvia a música na infância, pensava ingenuamente que a moça fazia companhia a quem lhe desse mais companhia.)
A biografia prossegue:
“Nasceu em Salamanca, seu pai lavrador,
veio à maioridade.
Pois quem nasce na roça
tem sempre a ilusão
de morar na cidade”.
Barcelona, Salamanca e castanholas são meros adereços, mero “traje típico” da personagem, tanto quanto a Babilônia e a Babel de Borges eram no fundo sua Buenos Aires natal.
Aqui, a memória instintiva do poeta o leva a falar em “lavrador” e “roça”, traindo a presença do mundo social que o inspira.
E ele continua:
“Sua mãe chorou no dia em que ela partiu
pra conhecer Dom Pedrito
que prometeu, não cumpriu...
Com frio e sede, só, na sarjeta,
sorriu para um homem
e ganhou a primeira peseta”.
Dom Pedrito e as pesetas são, mais uma vez, trajes típicos; os versos contam toda a história com uma bela economia de meios.
É belo o arqueamento angustiado da melodia em “com frio e sede, só, na sarjeta”, e o contraste com as notas solertes de “sorriu para um homem”, onde quase visualizamos um personagem masculino surgindo na tela, enquadrado em contraluz.
E aí vem o primoroso desfecho:
“O navio apitou.
Paguei a despesa, a história se encerra.
Adeus, Barcelona, adeus... Adeus, Dolores Sierra”.
Duas vezes na minha vida tive esta experiência estética. A primeira foi nesta canção, quando, no meio de uma narrativa na terceira pessoa, surge como que do nada este “Eu” que não pertence ao autor, mas a um personagem, dizendo que “o navio apitou” e que não pode se estender mais.
A segunda vez foi lendo “A Loteria de Babilônia” de Borges, quando, a certa altura de sua descrição desta cidade fantasmagórica, regida por uma Companhia invisível (que determina por sorteio a vida e a morte de todos os habitantes), li com espanto o narrador dizer: “Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está por zarpar; mas tratarei de explicar tudo”.
Recurso cediço e folhetinesco, decerto, que serve de álibi para as explicações truncadas e o final abrupto. Mas como um clichê banal se enriquece, ao ser transportado do folhetim para a canção, ou para o conto metafísico!
2 comentários:
Braulio, fecho contigo em gênero, número e grau. Suas colocações remetem a um momento histórico na evolução do pensamento critico brasileiro.
Um abraço
Olá; Bráulio, excelentes colocações. Acompanharei con mais cagar seus textos. Abs
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