Aconteceu há alguns anos, aqui no Rio. Peguei um ônibus do circular Glória-Leblon. Quando estávamos à altura da Praia de Botafogo o ônibus parou no ponto e um negão entrou pela porta da frente. (Naquele tempo, nos ônibus cariocas, os pagantes entravam pela porta traseira e saíam pela dianteira; de uns dois anos para cá, isto se inverteu). No Rio é freqüente a presença de pessoas subindo no ônibus sem pagar para vender quinquilharias: drops, canetas, cartões postais, “buttons”, adesivos... Geralmente decoraram um discurso pedindo ajuda, mas o repetem de maneira tão mecânica e inconvincente que eu, pelo menos, não me comovo nem me coço para puxar a carteira.
Nesse dia foi diferente. O cara que subiu no ônibus parecia um atleta de basquete da NBA: falava ligeiramente curvado para que a cabeça não tocasse no teto do ônibus. Tinha cada rebolo de braço que facilmente poderia estar ganhando a vida como segurança de show de rock. Foi entrando e falando, naquele tom arrastado de malandro carioca, aquele tom meio condescendente, meio arredio, falsamente amistoso; cheio de polidez fingida, humildade fingida.
-- Boa tarde a todos. Eu vim aqui para solicitar dos senhores uma colaboração. Estou desempregado, tenho família para sustentar, não consigo trabalho, mas não quero fazer como tantos outros na minha situação, que estão entrando para a vida do crime. Eu não quero recorrer à violência. Quero conseguir as coisas na boa, na paz. Podem olhar: estou desarmado. (Aqui ele puxava para fora as fraldas da camisa, dava uma volta completa mostrando a cintura) Se eu puder conseguir um auxílio sem machucar ninguém, eu prefiro, tá certo? Agora, eu gostaria que os senhores e as senhoras me fizessem uma doação por livre e espontânea vontade.
Todos nós, eu inclusive, sentimo-nos invadidos por uma espontaneidade que não tinha mais tamanho. Acho que dei cinco reais, mas vi gente dando dez, e creio que alguém tenha dado até mais. O negão saiu recolhendo o dinheiro de banco em banco, e desceu do ônibus, na próxima esquina, com não menos de 150 ou 200 reais.
A questão técnica é: isto foi um assalto? Juridicamente não, porque não havia arma (se descontarmos o negão em si, que já era uma arma ambulante), e não houve ameaça. Se alguém gravasse a fala do negão, transcrevesse no papel, e apresentasse num tribunal, seria apenas o discurso politicamente correto e legalmente irrepreensível de um sujeito que afirma claramente estar pedindo, e que afirma ser contra a violência.
Paguei metade por medo, e metade por admiração. O nosso “pedinte” produziu um texto teatral impecável, onde o estrato verbal foi cuidadosamente pensado para servir-lhe de salvaguarda num eventual confronto com as autoridades, mas a presença cênica, o tom da voz, o corpanzil, tudo deixava bem clara a mensagem ameaçadora embutida na cena. Não é toda peça em cartaz no Rio que pode se gabar de um texto tão sutil e de um ator tão convincente.
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